quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

              Voar

Me livrei dos sapatos-grilhões
     Os pés plantei para se tornarem asas
Pela janela do meu peito para
                        dentro de mim
                                                       voei

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Entrevista com K.

 Depois dum cansativo ensaio, fui me ver com ela, havia dito que precisava falar comigo. Espero que não seja nada de muito grave, sabe como é, nem sempre passamos por bons bocados. Sou humano e todo esse meu medo de ser algo importante é consequência de ser humano. Não existe nada de errado, então problema não tem. Mas caso seja importante?
Ela abriu a porta, era perceptível: o esperado. Desde dias passados ela estava remoendo, não os problemas passageiros: a conta de luz, a prestação do carro. Problemas superficiais, não podem ser remoídos por tanto tempo sem se desmancharem. Afinal, qual a menor partícula da matéria? Óbvio que quando se tem algo para dizer, é que não comece pelo o assunto de interesse. "Agonize a vítima", não é exatamente o que pretendem fazer as pessoas, mas é o que inevitávelmente acaba ocorrendo: uma conversa sobre absolutamente nada. Perguntei os motivos e respondeu:
 — Acho que estou grávida.
 — Como assim acho?
 Disse que entendia do seu corpo (tinha feito o teste e tinha não me contado). Quem sou eu pra negar? Ela estava mais roliça realmente, mas não esperava que fosse. Fiquei surpreso, quem espera um filho? Ou uma filha. Eu queria, não naquele momento; mas se não naquele, talvez nunca. As coisas são porque são pra ser. Não é? Abracei-a demoradamente e beijei-a. Falei que marcaria os exames no outro dia. Sai atordoado pelas escadas abaixo, dopado. No outro dia, fiz o que disse: marquei.

 Fazia semanas que eu não conseguia compor uma música, naquele dia foi diferente. Me vinha as vezes a idéia de que poderia ter sido outra notícia: ela poderia dizer que conheceu outro homem, que iria com ele pra França ou Portugal, num transatlântico ou num zepelim, viveria estudando as plantas, catalogando e toda aquela lenga-lenga tediosa. Ele teria uma coleção de borboletas em quadros. Eu tomaria a liberdade de ficar triste e prosseguir com essa minha vida com a banda. Sit and grin, the money will roll right in. Não acredito na liberdade, e não foi nenhuma coincidência a letra tratar justamente sobre isso. I'm going to Hollywood. 
 O exame era para o mesmo dia. Tempos Modernos. Se exige pressa e a pressa exige a mecanização. O inesperado é, quase sempre, uma explosão. No caminho para o consultório, resolvi ir pela feirinha. Parei obcecado: um vendedor ambulante de peixes, retirava do isopor com gelo, pesava-os os rosados, embalava num jornal e entregava ao comprador: recém-nascidos. Alguns choravam, outros eram pacíficos como Buda, aceitando a falta de opções, sem entender bem. O incrível era estar apenas quinze reais o quilo, bem menos que a consulta, ou os gastos futuros. Não sei. Espero que o meu não seja um. Que meu filho não seja um. Uma segunda letra iria surgir.
 No consultório os olhos tinham um prazer forçoso para me constrangir. Suava frio. Secava as mãos na calça jeans encardida de tempos em tempos. Quando chamaram ela, não tive coragem de entrar na sala. Senti que meu estômago se tornava o abismo de uma angustia intragável. É verdade,  ontem não fui tomar minhas pancas no São Francisco. A porta se abriu, logo entrevi uma cabeça que  novamente a chamou. Ela folheava uma velha revista, fazendo as palavras-cruzadas mentalmente (pois já estavam completadas). Levantei juntamente, e antes de entrar olhei pela janela do consultório e lá estava o vendendor na sua barraquinha. Mudei de cor por tempo suficiente para estampar uma expressão apatetada. Com a garganta seca, me vinha entalado pensamento: que meu filho não seja um. Entrei querendo estar em qualquer lugar, no futuro ou no presente, tanto faz.
 Tínhamos uma meia dúzia de músicas e uns covers mal-tocados, quando fizemos o primeiro show. Uma derrota. Essas coisas que as pessoas dizem, que serve pra "aprender". Depois deles houveram outros, mas o primeiro show se tornou uma piada, e só. Toda a desgraça é uma ótima piada. Um dia fomos convidados pra tocar numa rádio universitária que estava tentando ferver a cena local. Haviam ouvido uma fita cassete com um punhado de sons, gravado no sótão da casa da minha falecida vó (minha casa atual). Gravação podre, cheia de chiados, e os babacas gostaram. "Vocês parecem que tão tocando trancafiados num banheiro dentro dum porão que fica dentro duma caverna", resumindo: essa era a espécie de elogio que ouvíamos daquela gravação.
 Não sou dos guitarristas virtuosos, por que me irrita a virtuosidade desnecessária, que à rigor, não é uma virtude alguma. Aquela coisa bem polida, sem arestas. I like dirt. "Seu som é imaturo, que música agressiva, tem como abaixar um pouco, coisa de adolescente", estou fadado à ouvir essas merdas, por fazer o que gosto. Tenho que admitir que algumas músicas realmente são assim, mas tenho outras músicas que desconhecem. Que se foda, não preciso saber o que pensam. Minhas depressões, minhas constantes perdas de lucidez, a futilidade, o estranhamento, tudo isso me faz compor.
 A rádio desencadeou shows em regiões vizinhas. Pequenos festivais. Um circuito. Desenfreadamente, tudo o que eu sempre quis, e, puta que pariu, como eu estava feliz. O que é um mal sinal, porque não consigo compor, minha cabeça se perde no banal. Tudo soa falso. Odeio esses períodos. 
 Há pouco tempo viajamos todos para Londrina, inclusive Pamela; enchemos a cara, fumamos muita erva, cheiramos e o de sempre. No show estava ensopado de suor e as luzes davam um ar soturno pra tudo. Das sombras surgiam mãos, eu ouvia gritos enfurecidos. Estava tudo errado, chapado pra caralho. Rir, de todas, não é das piores soluções. Será que ela já estava grávida?
 Uma groupie me fitou o show inteiro, convidou pra uma festinha no apartamento dela, era perto dali, disse: vai ser divertido. Cheiramos uma vez mais. Eu me sinto bem. "Como James Brown", completou Jimbo, o baixista que se vestia de cafetão e sorria canastrão. Na primeira porta que eu entrei do apartamento: três mulheres completamente nuas em cima de uma cama redonda, se chupavam, apertavam-se com as unhas, gemidos de prazer abafado. Na sala me entregaram uma pílula, tomei e saí. No corredor, as luzes se apagaram e pela camiseta me puxou uma mão. Fui guiado até um outro quarto. Ouvi fechar a porta, pôs a mão na minha braguilha. Acendi a luz. Apaguei, empurrei Julie contra a parede. Pamela que se foda! 
 Estávamos afundando em drogas, sexo e tudo que tínhamos tudo graças ao dinheiro. Um produtor musical ligou falando que tinha visto o show em Londrina e blá-blá-blá, queria lançar pelo seu selo independente. Pensar que em Curitiba não encontraríamos esse filho da puta. Minha alegria monótona estava no fim. "Parabéns você vai ser pai", anunciou o Dr. Fagundes para mim, fiquei lesado. Precisava por a cabeça no lugar. Aguardei como nunca pelo anoitecer. Fumei um baseado antes de sair de casa e fui pro São Francisco, mas antes passei no mercado comprei um conhaque.
Ultimamente os shows estavam rendendo uma grana, me ajudando a me manter healthy. É confortável ficar triste. No bar todos estavam lá: chatos poetas ruins pedantes, estudantes de-qualquer-coisa, garotas saudáveis, vermes, cachorros, hienas, veados, ursos, tigres, porcos, lagartos, dragões, macacos, elefantes, girafas, lobos, até mesmo ninfas. Beber é um depressivo, mas quando se está triste é como se somássemos dois números negativos e formássemos um positivo. Com um sorriso sarcástico ou ingênuo, dá no mesmo, Jimbo e Caio chegaram.
— Adivinha cara, adivinha o que a gente arranjou
— Uma carta com anthrax?
— Não, deixa de ser tapado, algo muito melhor.
 Não existe coisa melhor entrando pela veias, amorosamente devorando-preenchendo e tornando oco. Fomos todos para minha casa, que se tornaria um antro, a porta dos fundos ficaria sempre aberta, vermes e hienas iam e vinham, riam, sugavam, transavam, injetavam, fumavam, bebiam. Estava farto de tocar, de ter que compor, queria o prazer imensurável que é ser engolido pela paisagem, ser a paisagem. Nessa época, eu me olhava no espelho e dos meus olhos eu não via nenhum sinal de alma, era uma carcaça sem essência. — Eu não tenho alma, nenhum humano pode ter alma, mas todos querem. O meu reflexo se mexeu, turvou-se a imagem que ria mostrando as presas. Os olhos que não se fixavam, ao mesmo tempo que não olhavam pra nada em si. Ele (ou eu?) pôs um braço na moldura do espelho, fazia força, gritava com um desespero ensurdecedor, não conseguiu, voltou pra dentro da sua prisão. Gritou com mais desespero, ânsia, medo, raiva e se projetou novamente. Saiu do espelho, que se quebrou, caiu no chão sujo de mijo, estava com os braços cortados. Do chão, virou o rosto pra mim, se levantando, tinha as expressões animalescas. Tremia. O que fazia a minha imagem em pé na minha frente? Me enforcou com as duas mãos, sufocando, lentamente senti meu coração, eu não queria vencer, desistindo de lutar.
 O nada que é tudo. Como eu odiava viver, eu só queria mais um pouco, pra evitar ter que suportar essa merda. Dias acordado, cansado, sem conseguir dormir, trancafiado em casa, onde sou dono do bolor, das teias de aranhas e do eterno cheiro de sopa. Nunca tive notícias da minha mãe, talvez fosse uma puta, sempre acreditei ser órfão. Afinal, estamos todos sozinhos nessa porra. Meu pai foi encontrado com a cabeça dentro do forno, morto. Nesse dia ninguém foi me buscar na escola, esperei por vovó, que nunca me contou o motivo. Acordei sujo de mijo. A delícia que parece escorrer lentamente como um afago suave. Levantei, peguei uns cigarros amassados, procurei um isqueiro em casa, nada. Esqueci o que estava fazendo. Abri a geladeira peguei uma cerveja. Lembrei. Acendi no fogão, subi as escadas cambaleando. No sótão fumando e bebendo, gravei uma fita com algumas faixas. Tudo estava lacrados na fita magnética. O telefone tocou, desci as escadas. Gostei bastante do som de vocês, e uma pá-de-merda, disse o produtor.
 Pamela nunca parava de tomar porres, mesmo depois de descobrir da gravidez, ou de fumar um baseado; mas cheirar, dizia que havia parado. Ela que costumava me olhar com peçonha, não me passava muita confiança no seu afirmar. O que me incomodava nisso, é que ele inevitávelmente nascerá numa realidade miserável, inevitavelmente será um. Justamente o contrário do que eu quero. Me forçar a ter que viver pra ensinar como a vida é uma merda, ver ele quebrar a cara. Vai cometer todos os meus erros (vai descobrir erros melhores). Não quero viver esse tempo. Ele vai chegar na mesma conclusão que eu. Vai desejar a morte, mas algo vai mudar ele, assim como ele me mudou, vai acabar estendendo o tempo, até tudo que ele pensar perder a validade. Se tornará esquecimento. Abandonado numa esquizofrenia bolorenta. O que exatamente está acontecendo comigo? Não quero viver pra sempre, um maldito ciclo desnecessário. Eu pensava em dar chá abortivo, ou. Acabei não fazendo porra nenhuma. Sou um rato. Quando me ligaram avisando que meu filho ia nascer, eu estava completamente entorpecido, desconstituído da realidade, não percebi o telefone tocar, ouvia só um eterno sino que reverberava por toda a vida, atravessando o tempo, uma nota que resumia a perfeição. Se me arrependo? Não, ele nem pode se importar também. 
 Depois que nasceu, me senti um lixo e demorei pra perceber que sou um. Eu já estava cheio da grana, o segundo album fora lançado, mais uma caralhada de show. Agora, até gostava do garoto, deixava a vida menos mecânica. O problema, já sabemos, é que nada é eterno e quando se sabe disso, que se está sempre na beira de cair no abismo e não saber por quanto tempo vai ficar atolado na merda. A paranóia  de tudo está prestes a fracassar. Quiças, já se esteja no abismo. Esperar é uma merda, mata de cansaço. Por que você não cresce logo, pra eu ter com quem conversar? Será que eu ia conseguir te explicar?
 Na ultima música do show Jimbo arremessou o baixo contra a bateria, destruindo tudo que havia no palco. O público (lógico) foi ao delírio. Caio furiosamente socou o rosto de Jimbo, até tirar aquele sorriso. Agora, ele usa dente de ouro. Mas já fazia um tempo que nada andava bem. Eu desliguei o amplificador, saí, não queria mais nada daquela banda. Começaram a me ligar dizendo que estava tudo bem entre eles, tentavam a me convencer à continuar, mas eu já estava farto. Falaram do meu filho, foi a gota d'água, desliguei. Montaram, cada um, uma banda. Não fizeram sucesso. Se conseguiam tocar era porque Jimbo era o baixista que tocou na banda Y e o mesmo com Caio. Pamela depois que o filho nasceu afundou num lamaçal (já estava nele a muito tempo), estava usando cada vez mais drogas, que eu tanto me esforcei pra parar, depois que a banda acabou. "Você está me traindo, você não me ama, eu odeio você", costumava berrar por qualquer motivo, não era raro ver ela espumando pela boca com um olhar psicótico, segurando a criança como se estivesse protegendo ela do mal que não faço, eu me refugiava no sótão. Nessa época ninguém mais aparecia lá em casa, nenhum filho da puta aproveitador de merda. Parei de dar dinheiro pra Pamela e ela sumiu de casa. Ela vivia na rua chupando pau por uns trocados. Já haviam me falado nisso, de que ela era assim. Não importa também. Tudo é descartável: o amor, o dinheiro, a vida. Por esse prisma, o suicídio parecia uma boa maneira de encerrar tudo. Me veio na cabeça de quantas vezes eu toquei minhas próprias músicas, e quantas vezes mais eu iria toca-las (da forma errada ou não), e quantas vezes eu esqueci a letra e quantas vezes mais eu reinventária uma frase. Quantas vezes um viciado pela vida pode recomeçar? Quantas vezes ele quiser, correto? Mas e ai, vou ficar na repetição de ciclos dentro de ciclos? Como o tempo custava pra passar. No começo criei manias, ou hábitos (como queira), me ajudavam a matar o tempo. Todas as hienas olhavam pra mim e riam, os vermes só conversavam comigo pra me sugar, queriam minha opinião, queriam que eu falasse alguma merda pra me darem uma rasteira. Aprisionava-me em casa e ficava feliz por saber que existiam alguém no mundo mais preso do que eu no Japão, na Rússia, ou fora de casa. Sei-lá-quanto tempo. Se sabe que a vida é um lixo, quando se espera na fila do mercado, ou pela consulta no dentista. A espera é uma prova, você vai voltar a esperar. As coisas vão quebrar e você vai ter que consertar e consertar e.
 Quantas vezes me olhei no espelho aguardando aquele reflexo maldito sair, ou acordar de novo dum sonho dentro doutro sonho. Era dia cinco de abril, aniversário do meu filho (havia esquecido) estava com a gravata pendurada, pronto para por o pescoço. "Admito", ele riu e prosseguiu, "sim, morrer igual um velhote". Quando ouvi a porta abrir e lá estava meu filho. O inesperado aconteceu. Nunca haverá uma repetição como essa, entende? Me encontrei num estado leve, como o Satori. Abracei meu filho tão forte no meus braços, meus olhos mareavam. Não estava triste nem feliz, pela minha cabeça se passou um cena:
 Andava de mãos dadas pelo centro com vovó, quando um sino começou a tocar. Vibrava insasiavel, por cima dos murmúrios da cidade, do céu da tarde, do vento tão pueril e melancólico. Em momento algum nada deveria ser. Acordei com a tua ligação, e ainda não sei porque aceitei. Tô cansado de falar, aceita um chá? Depois vai transpor a entrevista da fita pro papel, como vai fazer?

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

nº1

A morte beija
e deseja saúde
aos que vivos
aproveitam.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Novíssimas Noticias do Amor



VENDE-SE PRIMAVERA

(Há coisas que não tem valor)
Os amantes, que nada sabem
 do comércio, não se entendem,
 negociam na floricultura por
uma primavera a mais.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Batalha Naval


Você
é um ponto (como eu)

dois pontos no universo
 perto ou longe

dois pontos que
   se afastam
      se aproximam

você um ponto em algum lugar
outro ponto em algum lugar eu

dois pontos perdidos
               de cá para lá
   de lá pra cá

dançando no convés 
enquanto afunda o navio