quinta-feira, 22 de março de 2012

Xeque-Mate

Numa estante empoeirada, está o ajuntamento, a coleção de pequenas coisas sem importância alguma. Em um frasco estava o ar da primavera, em outro o cheiro do mar, dentro de uma caixa estava o som da rua, e em outra os bigodes de Hermann, o gato e também uma criação de larvas. Eu que também sou um colecionador aficionado como ele, porém logicamente menos aficionado, fico impressionado com a abundante coleção de meu amigo Martins Hueller, uma farta coleção de objetos raros, e de um extraordinário incrível, também de um gosto muito excêntrico, por exemplo; um dedo de um pintor expressionista em decomposição. É estranho também notar que o assoalho de todo este comodo é feito de quadrados mais claros e mais escuros, que se alternam como um tabuleiro.
Ele abriu uma caixinha liberando o estampido de um tiro e um grito de dor, aquele som havia me acertado bem no peito e o grito parecia ter saído da minha boca, era exatamente assim que eu sentia aquele pavoroso som, o anfitrião tinha pintado no rosto um sorriso, prosseguiu, "essas caixinhas são todas iguais, mas prometo que a próxima será o que eu quero te mostrar", abriu outra liberando enfim, o tão almejado som da chuva, um som, que se me permitem dizer, era mais real do que se pode ouvir num dia chuvoso. Se apressou então a procurar um rolo de filme, procurou de cima em baixo, por fim não achando, tratou de chamar o ecônomo, que mostrou-lhe que estava em cima da mesa, em baixo das inúmeras cartas rasgadas, mostrou-me então a sua maior raridade "Os segredos de Heitor Marauto", segredos que estavam gravados numa bitola cinematográfica de oito milímetros e meio.

Marauto, o coringa, amante da Rainha de Ouro que era esposa do Rei de Copas.
Tudo começa com uma jogada fora do livro;
Coringa estava ao lado da Rainha.
Bispo da cor errada.
Rei estava cavalgando com seu rocinante.
Coringa sai da diagonal do bispo.
Torre está na reta da Rainha.
Rainha beija o Coringa.
Rei observa tudo em cima da Torre.
É anunciado o xeque ao Marauto...

Infelizmente não foi possível ver o filme até o fim pois pelo que entendi o próprio Rei mandou seu Valete roubar a película e queimar a própria. Voltamos para a sala onde estava os frascos e recipientes, ele me mostrou mais um pouco da coleção; lágrimas de uma pequena bailarina dentro um pote vidro, fotos dum soldado soviético, escamas de uma sereia, pedaços do céu.
O silêncio foi perturbado quando o ecônomo entrou pela porta, dizendo que uma visita haviam chego, meu amigo, bom anfitrião como era, correu para acolher a visita e me deixou no comodo, pelo o que eu entendo devia uma senhorita, mas não dava para entender a conversa. Sozinho, eu olhava o relógio de tempos em tempos, afinal quando ele vai voltar para me dizer aquele tão importante assunto que queria tratar, e, já muito intimo de meu amigo, fiquei observando sua coleção. Foi nesse momento enquanto eu mexia em alguns objetos que estavam em cima da mesa, que surpreendentemente encontrei cartas de tarô espalhadas em cima de um tabuleiro de xadrez, observei os arcanos maiores, de um lado a Imperatriz, de outro a Morte e o Diabo, no meio o Louco. Um presságio para o pior, é o que presumo disso. Ouço um estampido, um grito de dor e um clarão. Xeque-mate.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Uma dia da rotina de Ernesto Pereira

Passava horas e dias sentado, atendendo pessoas de todos os tipos, com as mais variadas dúvidas, as mais absurdas perguntas. Nenhuma vez, na verdade nunca, lhe faltou o sorriso no rosto e a boa educação. Tinha medo de ser mal educado, de não sorrir, de não ser simpático, de não fazer o seu trabalho bem (Mas é claro que com o passar dos dias...). Por sorte, ele havia encontrado sua musa inspiradora, e, ela estava logo ali; numa parede branca, onde um pincel pintou com tinta verde um retângulo, estava o rosto dela quase como colada na parede. Olhos azuis, cabelos loiros, um sorriso. Um sorriso, que em efeito dominó, criava o caos, fazia florescer outros sorrisos. O sorriso dele.
De mim um sorriso também surgia, junto com inúmeros suspiros dentro de devaneios. Gostava de imaginar, quando não havia ninguém para atender, que aquela moça que ficou como pintada, ou colada naquele meu muro, que não era meu. Custaria muito ela vir aqui ser atendida, pra quem sabe comprar alguma coisa, qualquer coisa. Pra mim você nunca vai sair da minha parede, mas bem que podia.
Quando entrava no ônibus, num estado semi-letárgico, e ouvia "próxima parada: Praça Bella Feitosa dos Santos", gostava de imaginar que aquela mesma moça que ele via na sua parede, era a mesma que falava, com ele no ônibus. Sentava-se numa cadeira qualquer, deleitava-se com a cadencia da melodia, tão bela. Si belle.
Pelas ventas entrava um cheiro, aquele cheiro acebolado que parecia exalar de todos e dele também. Sentado, caia no sono, se não sonhava com ela, sonhava com a coxinha que iria comer logo a seguir. Cosi gustoso. Se não dormia, gostava de observar as pessoas e imaginar o quão odiosa é a vida humana, pelo menos dentro daquela caixa metálica ambulante parecia ser, então, logo preferia olhar a janela, esvair o pensamento para bem longe do terceiro planeta do sistema solar e entrar em outra órbita. Mesmo sem querer dormir, acabava dormindo.
Acordou no ponto certo, no ponto de sair. Sempre que saia dizia tchau pra aquela loirinha, que sorria pra ele, eternamente na sua parede e que vivia dizendo tão sutilmente: próxima parada...

segunda-feira, 12 de março de 2012

tudo que queremos e mais um pouco

   não temos tudo que queremos

          mas
menos
                      mais
         desmenos


 não temos tudo que queremos


mas

                  nunca
desqueremos de ter tudo que podemos