sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Cigano das Pulgas

 A primeira vez que fui ao mercado de pulgas com meus familiares, foi graças ao meu tio, atrapalhado e não muito benquisto pelo meu avô, frequentemente interrompia nossos almoços dominicais para contar suas longas prosas; discutindo sobre como os pistões dos carros funcionavam (coisa que vovô quase sempre discordava em grave tom), ou o dia em que decapitou o dedo do pé, e ainda como ele possui (transplantando) um tendão de bode na coxa; neste dia em especifico conversara com meu pai sobre os negócios que havia feito com um cigano no mercado de pulgas:
 fumos vindos da índia, aparelhos de procedência duvidosa, antiquidades da guerra, também chocolates belgas, e veja este relógio de pulso Russo, dizia o perna-de-bode.
 Queria ver os tais vendedores de pulgas, entendendo que lá estaria o circo de pulgas, imaginando pulgas em suas profissões circenses, malabares com fogo, mímicas e entre outras performances. Me envolvo com a imaginação; logo, protagonista de ficção. Já não basta ser desta?
 Naquele mesmo dia, meu pai nos levou para a feira, estávamos em meio a vários comerciantes que vendiam as mais diversas quinquilharias, músicos com instrumentos raros, que nunca mais revolvi a ver.
 Vovô avisara para não confiar em comerciantes, pois estes se alimentam da crença em suas lorotas. A comida lá cheirava muito bem, perdendo somente para a macarronada de domingo, e certamente, ganhando das polentas com frango. Em geral, tradições que foram se perdendo e que atualmente não é mais possível encontrar com o mesmo vigor. Algo a ver com a minha geração talvez.
 Havia um senhor com uma caixa, rodeado por porção ingrata de espectadores fixos; cada um por uma espécie lente. Atenção: aparecia uma pulga. Só podia ser! Estavam todas escondidas no caixote. Em meio a multidão você pode se perder; ela me prendia firme pelo pulso.
 Na primeira olhadela que mamãe mamãe deu nos diversos tapetes orientais, incensos que coçavam o nariz, esculturas em madeira; e Papai, distraído, fumava cigarro com outros moços e riam-se sozinhos, escapei! O cigano me deu uma banqueta para que eu pudesse assistir.

 Petrus acabara de acordar de seu eterno sonho de marionete, e já estava ofegante por ter uma vida e encher os pulmões com ar. Levantou-se do assoalho daquele vertiginoso salão em festa. Dava para sentir o quarteto de cordas latejar no peito. Era o mais encantador som que já houvera ouvido, enquanto vivo. Tudo bem, ele só havia poucos segundos de vida, mas sabia aprecia-los.
Dançava com seus duros, rígidos e quadrados movimentos. Meio ridículo e desengonçado, certamente. Avistou, pelo rabo do olho, um borrão; que tanto poderia ser uma mosca, como uma moça. O borrão se tornou mais encantador do que a música. Quando no foco de sua visão formou-se a bailarina, que tinha uma boca, um nariz e dois olhos. Petrus não se acanhou. Ficou tanto tempo compenetrado no sonhar-acordado, com o olhar estático nela, que foi impossível que não reparasse naquele sujeito de alguma forma cômica, de expressão meio boba e que falava ela para si e para quem quisesse ouvir.
 Por instantes, enquanto dançava; pois dançar era tão natural quando respirar era (ou começou a ser), também fixou-o olhar. Entrelaçados os olhares, esboçou-se um sorriso dela, que ressoou nele como um sino. Corpo todo tremia, e, sem entender bem o motivo, sorriu. Aconteceu o que eu nunca poderia sentir. Queria ir até ela, para. Só queria ir, mas o salão sanfonava a cada passo trépido em que os pisos giravam em padrões branco e preto. Queria.
 Chei'de vontade, ele caminhou: um, dois, três, quatro, sete passos. Sublimou-se. Deu meia-volta e ficou parado, de costas para a bailarina. No momento, um senhor de pele queimada, que estava a observar tudo; um bonacho, que fumava charutos com folhas de mais de oito palmos e que por algum motivo usava um bigode falso, lhe entregou uma taça de confiança envenenada com distração e um pouco de desespero, também lhe ofereceu um trago demasiada confiança, falou algumas palavras para solidificar toda aquele fluído sublimado em gagueira. Desengravatou o nódulo. Finalmente, fez com que  ficasse chei'de si, que deu novamente meia-volta, não avistando a bailarina.
 Perguntou numa roda de três senhores, se eles haviam visto uma garota de uma boca, um nariz e dois olhos. O primeiro Senhor balançou a cabeça da esquerda para direita, o segundo Senhor balançou de cima para baixo, e começou a falar:
 — Um romeno sujo, pele marrom, ouvir deve-se não que palavras, deve caso ouvir não se confiar, ganhou o jogo de cartas: 1 caixinha de música (que portava bailerinazita, dançava ao som de uma música sem fim por suas engrenagens. Romeno de espetáculo itinerante, fez da jovem bailerina uma de suas atrações, que incluía uma guerra civil de bonequinhos de chumbo, marionetes que apresentavam peças de teatro, pulgas contadoras de histórias, entre outras coisas absurdas. — Pausa para respiração; prossegue: — Todo ano o romeno fazia uma festa com todos os seus empregados, que acabavam por ganhar vida, e se divertiam sem saber que a própria festa era uma espetáculo improvisado do traiçoeiro, apresentada para seus clientes mais ricos. Dizem que esse é o espetáculo que mais o fazia lucrar no ano — Concluiu triunfal, o Senhor 2, como se tivesse decorado um texto teatral com plena desenvoltura.
 Petrus sem entender muito, observou o terceiro senhor que fazia um gesto com as mãos, sugerindo a loucura óbvia de seu pobre amigo.
— Senhor sabe de algo? — Parou com os gestos, apontou o dedo para o quadro e seu limite de arestas da sala.
 Foi o que fez:
 Atravessou a porta e estava na coxia de um palco escuro. Ouvia-se os sussuruídos e coxixos. Apareceu o senhor dos ilegítimos bigodes, aquele que mesmo do. Deu-lhe um empurrãozinho gentil. Petrus caiu de cara no tablado. A vermelha cortina, em trapos, se abriu. Mil olhos de onde só se viam a claridade dos dentes, e se ouviam o mexer dos panças miúdas e as gargalhadas. Reconstitui-se ligeiro. Fez uma pose, botando a perna esquerda na frente da direita, com as mão apoiadas na cintura. Esperava um sinal, como um alarme ou sineta. Mas e se o sinal já soou e ele não estava prestando a atenção necessária? Inverteu: botou a perna direita na frente da esquerda.  A platéia arremessou a palavra: Bobo. Percebeu que deveria fazer algo, fosse o que fosse, que pelo menos fosse algo além de estar com as mãos na cintura e com um pé diante do outro, esperando para que algo acontecesse.
Inexperiente, começou a falar. Mas não tinha voz.
 .
O.

 Correu até o outro lado da coxia, entrou entrando no escuro que ascendeu num quarto enorme. Sentou-se na cama (próximo a um baú), sem prender-se nos detalhes, abaixou a cabeça e pouso-a nas mãos. Esvaziava os pulmões: como doía estar vivo e perdido. O quarto tinha as paredes pintadas com o azul do mar, e, acima da sua cabeça adquiriam a tonalidade das profundezas marinhas até o teto, onde tornavam-se quase negras; e em todos os cantos havia estrelas e mais estrelas. Tão compenetrado em suas mágoas, não ouviu a porta. Não conseguia se sentir acompanhado apesar da quantidade de estrelas ao seu redor. Ela afagou lhe os cabelos lentamente, beijou-lhe suave como brisa.
 A primeiro momento assustado, levantou a cabeça sorrindo. Respirou longamente, estava pronto para. Um estampido de tiro, os empalideceu. Saíra do baú, e vinha de um boneco de chumbo, que segurava uma muleta na mão esquerda e uma pistola na direita. Acabara de voltar da guerra, alegava, e retirou da carteira, tremilicando as mãos (com a pistola entre os dentes e com a língua pronta para disparar no menor movimento), fotos 3x4 da bailarina e de sua família, crianças belas e feitas chumbo maciço. O soldado em lágrimas, soluçava. A língua escorregou, o disparo aconteceu. Uma mão surgiu do telhado que se abriu. Havia uma porção de grandes olhos atentos. A mão pegou-o do assoalho com brutalidade. Gritava mudo, sofria como um mímico, enquanto era jogando numa caixa escura. O cigano colocou o bigode falso, sorriu e me piscou o olho sinistro. Estava irreconhecível. Quando lhe pedi para que o libertasse, "para que vá ao médico", implorei. Abriu a caixa e tirou um fantoche molenga, "está vendo, não esta morto e nem pode um boneco morrer", disse  seco e cínico.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Oficina do diabo

a santa Loucura
(virgem puta) nasceu invisível aos destreinados olhos
e
está presa
(disponível)
à orelha esquerda
de quem quiser a ouvir

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Quiromancia

Nas palmas da minha mão
estão linhas que se entrelaçam
com as ruas da cidade
olhe bem o asfalto rachado
perceba nele as minhas rugas
ouça nas sirenes os meus gritos abafados
no calor da chuva o meu suor
perceba jogados no chão meus sonhos
que se prostituem por uma droga barata

Onde começa o universo e acaba meu corpo?
existe um traço que delimite?
existe algum acorde que sustente?

Desmaio na falta de limites
entre o chão e meu corpo
torno-me paisagem

Peixe fora d'água

Foi fritando uma tainha nos mês de junho; empapando meus bigodes de gordura, recordei do pedido do meu falecido Pai, que só a pouco pude encontrar resposta. Foi necessário ir aos melhores terreiros, também recorri a sabedoria oriental, e mesmo assim insatisfeito, tive que esperar que o senso comum aceitasse as explicações da física quântica, e o mundo das idéias onde a ilógica é forte. As pesquisas etnográficas de tribos xamanicas, deram suporte aos meus relatos, estarão disponíveis no apendesse (que somente será liberado, caso compre os direitos da minha obra na integra).
Pra poder responder meu finado Pai, tive que acessar minhas essências, através de meditações e uso de plantas estrangeiras (o conhecimento lotófago, foi primordial). Descobri que já fui español, português, inca, tuaregue, e acredite se quiser, tigre, quero-quero, preguiça e peixe. Minha esposa fora alguma francesa louca da revolução, condenada como herege e julgada como bruxa, queimou em fogueiras, entre outras torturas medievais sofreu. Provável que nessa época, eu fosse um vilão, ou coisa aparecida, mas prefiro evitar qualquer otimismo, ou até mesmo o contrário. Felizmente, aceitamos muito bem nossas diferenças e loucuras, apesar dos extintos opostos que temos: eu, peixe fora d'água e ela, felis inovencilis.
É verdade, fiz grandes descobertas, mas não pude ir mais longe, mais longe de mim mesmo. Não posso alcançar a distância infinita da geração-universo de meu pai; por isso, encerrei as pesquisas, insatisfeito, obviamente. As respostas eram negativas, porém a pesquisa até que serviu para ganhar alguns cruzeiros.
É necessário um pouco de sombra para que as formas sejam realçadas, um pouco de desconhecimento para que o conhecimento tenha um pouco de brilho. Mas meu pai tenho certeza que se não foi um bárbaro, foi pirata. Não, não posso afirmar, mas afirmo. Eu sinto que foi.
De qualquer modo, foi fritando hoje, que pela janela observei duas crianças: (à priori) meus (se é possível ter posse de algo), como dois ursos selvagens, índio e cowboy, alienígena e astronauta, e não era de assustar que os dois corriam como dois garotos hippies sujos, cheios da maior graça que podiam ter. Tinham as pupilas como sóis, queimavam em pureza. Me apressei pra pegar a câmera e registrar o momento. Os dois se abraçaram sujos de lama e suor, com os sorrisos de janelinha aberta. O mais novo estendeu o braço: o bom-e-velho simbolo da paz. A impressão revelada não seria muito diferente de uma tirada dos anos 70'.
Não tardou para que filha mais velha aparecesse o cabelo curto, pintado de preto, a maquiagem borrada embaixo dos olhos, os coturnos escuros, a calça de couro, camiseta mais larga e um penduricalho triangular roxo na orelha.
Estaria a desafiar minha autoridade? Provavelmente sim, sou um pai, e é de minha natureza ditatorial que se protegem os filhos, ao mesmo tempo que não posso controlar o devir (e quem pode?).
Ela reclamara do peixe frito, dos gases na camada de ozônio, das desmatadas florestas, da fome no mundo, reclamava de tudo, mais indignada não poderia estar.
Tento aliviar: digo a ela que a vida é injusta, e que na minha casa, que na minha casa (o pensamento foi interrompido).
Ela reclama da vida injusta.
Não posso fazer melhor, além de sublinhar. Mando ela experimentar a tainha(!).
Ela me da as costas. 
Me ignorar é a maneira de sair por cima. Falando assim pareço um lunático. Talvez seja. É da natureza da humanidade. Não me estranha também a loucura da minha familia. Onde estará a minha esposa? Surgiu agora, com a maionese na mão e com o celular grudado na orelha, gritou pra Oswaldo  e Mário lavarem as mãos, também veio me informar o que havia feito de errado; chorava nossa filha, por minha culpa.
"Culpa minha?", recrutei e fingi que não. Ela me olhou (não lhes contei que ela é uma leonina?).
Mas que descaso, ser pai nunca foi fácil. Hoje ou em qualquer galáxia. 
Emulei uma subida pelas escadas.
"Filha, eu sei que você procura uma identidade, mas não é se opondo a mim que você vai descobrir quem é, ou melhor é assim que você descobre quem não é. É descobrindo quem você não é que você começa a me odiar. Não, não era nada disso. A vida é injusta pra mim e pra você. Olha, eu nem sei quem eu sou também e agora não sei o que estou fazendo. Ser pai nunca foi fácil e um dia você vai ver, quando tiver que descobrir quem eu realmente fui, pra pode você também ser mãe. Bem, esqueça tudo o que eu falei. Sempre bom ensaiar os discursos no espelho. O reflexo sempre fica bem perto do rosto e da até pra ver.  Da até pra ver, da até pra ver o vazio."
Sem tempo para cíclicos ensaios, veio brisa leve que anunciava — OS MALDITOS PEIXES! — como exclamava, irresoluto, pelos séculos a fora; o pai de todos os filhos, o pai que esqueceu que é também filho: um pai por fim, ou por fim um pai frito.