domingo, 22 de dezembro de 2013

Silencioso

As calçadas esperam
tanto quanto eu
por alguém que as olhe
e não diga nada

Nós, que muito pouco nos dizemos, 
somos cúmplices de alguma ironia

Tanto faz se
quem tem boca vai a roma ou se
todos os caminhos dão em roma

Eu sempre acabo
na esquina da tua casa

domingo, 1 de dezembro de 2013

A queda dos alpes andinos em lá maior

A
AA
AAA
AAAA
AAAAA
AAAAAA
AAAAAAA
AAAAAAAA
AAAAAAAAA
AAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!?

Perto demais

palavras
rimei todas
e tive o que quis
disse tudo
falei muito
tentei
mas não demais
cansado
amanhã
tentei
não
demais
PARA!
assim.

Mote

A industria
é uma cabeça
que funciona
pra produzir
(mas a gente
costuma usar
só pra ser triste)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Ressaca de Segunda

Não sabia nada
caiu em certas responsabilidades
era domingo de churras
a casa pantanal de imundice
crocodilos na piscina de 1000 litros
peixes dormiam sangrando na cozinha

tomando exageros
é domingo de churras
engavetou problemas e ficou sem horas
conversou sobre ovos quebrados
bamboleou, o coração caiu na grelha
exagerado e de viva estupidez
naufragou no iceberg do copo

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Daniel Risadinha

É inegável que todos sempre perguntam sobre Daniel e sua estranha história de vida. Eu o conheci, morava com ele, eramos amigos de bera, mas quase sempre nossos horários eram diferentes e pouco nos encontrávamos em casa. Nos finais de semana bebíamos, quase sempre já nos encontrávamos cozidos. O hábito da mentira em suas anedotas, deixava sua prosa escorregadia e davam a ela um frescor ao repeti-las.
Daniel foi parido usando óculos escuros, desde então nunca mais o retirou, nem ao menos para dormir ou tomar banho, no breu noturno ou no corredor sem luz. Além disso, durante a sua gestação, sua mãe alimentava-se com cevada, acostumando-o com a bebida. Aos 13 anos, ganhou a jaqueta de couro jogando truco num bar, esta que já possuí forma e vida. Aos 16, uma carona da policia até em casa. 
Seus óculos não lhe saem da face, é impossível retirar-los. Não possuí globos oculares. Outros boatos surgiam, dentre eles, o da estranha Melissa, se ressalta: Enquanto dormiam juntos, esta resolveu retirar-lhe os óculos, e por trás das lentes escuras não encontrou nada, somente uma ausência. Dizia, porque ele não expressava sentimentos além de um sorriso que não retirava do rosto, mas todos nós sabemos do coração de manteiga que Daniel tem, assim como a sua falta de humorismo.
Mas quem é Melissa? Garota que foi abduzida por alienígenas e até hoje não toma nada a não ser seu chá de guaco, e desconfiam (os espertos) de que a erva seja outra. Sempre conta suas mentiras com seu impenetrável cinismo, ou será somente ingenua? O que importa é o que foi dito. Sua mãe vive dizendo por ai que ela não deixa de tomar os remédios e acusa Daniel de ter degenerado a filha.
Outros dizem que ele nasceu com olhos, mas que estes foram consumindo-se pela insonia e as consecutivas ressacas. Realmente, quando este não estava estudando, estava bebendo, ou estudando bebendo. Muitos dos que dizem pouco conhecem esta ilustre figura. Ele que pouco costuma falar, desde que voltou das férias de verão, estava a falar ainda menos. Suas principais expressões eram gestos: aponta-me o indicador, me nega com a cabeça e me agradece junto a palma das mãos e se inclinando. 
Durante o jantar, sentou-se a mesa e depois da terceira lata de cerveja começou a rir. Contei a ele uma história engraçada que não lembro. Ele ficou triste, não entendi. Tentei anima-lo, abrimos as latas e viramos num gole. Foi então que me contou a sua história. 
Estava na casa de sua mãe, assistindo um filme de terror na televisão, já devia passar das três horas da madruga e sentia fome. Ao abrir a geladeira se deparou com um pote de pepinos, deviam estar lá faziam dois anos, a água estava amarelada. Abriu: cheirava mal, mas ainda eram de pepinos.
O vento parecia uma gargalhada infernal. Achava graça, mas não tinha ninguém para compartilhar o momento, uma bosta de situação. O dia estava quente pra caralho, resolveu sair de casa e ir beber no posto, o único estabelecimento aberto no momento.
Caminhou pelas ruas do bairro tranquilo. Dois ou três postes fraquejaram as luzes, mera coincidência. A gargalhada novamente surgia. As ruas estavam todas desertas. Entrou num beco para cortar caminho, a gargalhada voltou. Avistou no final da rua: um anão. Podia ser tanto um bêbado ou mendigo, por isso não se assustou, sabia lidar com esses tipos. Se aproximou, o anão tinha um enorme bigode e uma barbicha triangular. Não conteve a risada, o anão fez o mesmo, só que a sua era extremamente alta e aguda. O anão indagou-lhe se queria comprar cerveja. Não sabe direito o que transcorreu, apenas que o anão vendia cervejas pelo preço de uma alma, brincou. O anão ainda disse: toda cerveja do mundo! Indubitávelmente aceitou. E dentro de uma mochila encardida e fedida, retirou uma sacola com dose latas. Bebeu a primeira e foi se esquecendo.
No outro dia, acordou deitado na calçada da rua de casa. Segurava a sacola, com as dose latas, tão firme que não conseguiu mais solta-la. Estavam todas geladas, abriu e assim rebateu a ressaca. Seus óculos disfarçavam seu enjoo e sua jaqueta nunca parecia se sujar.
Chegou, exatamente na hora do almoço. Sua mãe preparava a comida, perguntou-lhe porque havia esquecido a TV ligada, o picles aberto em cima do tapete e por onde diabos havia passado a noite. Não respondeu, e sentou-se no sofá. E ali ficou  sentado, catatônico, até o dia em que resolveu voltar.
Comprou as passagens e aguardou o ônibus por duas horas na rodoviária. Pagou o que se paga em duas coxinhas, por meia coxinha. Sentou-se na janela e do seu lado uma loira peituda, sendo que mulher pra Daniel é 80% peito. A desgraçada não parava de falar. Abriu a mochila e pegou uma bera, alucinando a risada: tudo ficou mais fácil.
Ele que era desanimo, começou a dar trela para loira. Ela infelizmente aceitou algumas latas de cerveja e com uma gratidão imensurável devolveu-lhe tudo o que havia tomado, em cima dele, três vezes mais fermentado do que o normal. Ela chorava e pedia desculpas, tentou consertar dizendo que ele havia uma fabulosa risada e que não deveria perde-la jamais.
Ele foi ao banheiro para trocar de roupa, ela decidiu ajudar-lhe. Estavam os dois apertados, entre atrito das calças jeans e um cheiro catinboso. Ele arriou as calças, não costuma usar cueca, e sentou na tampa da privada. Ela sentou na dele, ele entrou na dela. Ela gritava de maneira desengonçada, em meio a arrotos frequentes. A porta se abriu, no exato no horário em que a quicada da loira, fez com a bunda de Daniel rompesse a tampa do vaso, entalando-o. Era o anão que estava na porta, e começou a comer o cu da loira, que estava dormindo em coma. Daniel mandou ele pra puta que o pariu, mas foi ameaçado: "que tomasse cuidado, pois iria perder tudo e muito mais", e recebeu uma marretada da cabeçada do cacete do anão.
Retomou a realidade e tava sentado no mesmo banco, a loira do seu lado ainda dormindo. Com a latinha, continuou a sua maneira. Antes de chegar à cidade, a garota insistiu em elogiar sua risada mais uma vez, disse mais: queria rouba-la. Ao sair despediu-se dizendo que iria tê-la de qualquer maneira, saiu rindo como se houvesse graça.
Ele interrompeu a história. Mudo, abriu mais uma lata e de dentro dela saiu uma gargalhada. Sorriu, mas seus óculos já não podiam mais dissimular tristeza.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

51

engoli o mundo
com cachaça
e caldo de cana
o mundo me fez

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Cafeina

Não se dorme mais
nem se fala em silêncio
não se nota afogado em cansaço
um café nada é
impossível
nem sentindo
mais um

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Eu devia mudar meu nome

tenho estado de pé
por semanas a fio
fumando um trem
deixo que me digam o que fazer
tenho esperado demais não sei pelo o que
paro
tento prestar atenção
mas não consigo
tudo começa de novo
a imagem
outro som
a palavra
outro sentindo
volto
repito o que acabei de ouvir
mas foi exatamente o que disse
admito nunca estar errado
estou certo
tão de sacanagem
ou eu que avacalho?
boçal que sou
devia logo adivinhar
que queriam botar no meu rabo
mas não vão conseguir dessa vez
tenho mais sorte que coragem
sei carate e também kung fu
não preciso de maquiagem
sei muito bem dar chute no cu
tenho cicatrizes de verdade
pelos no peito e fico bem sem camisa
não perco a compostura
meus amigos pensam que sou feio
mas tenho um rosto másculo só isso
e piloto uma cama como ninguém
tenho mastigado cadeados
cuspido como uma metralhadora
José Wilker trepava com mamãe
tem dinheiro sobrando e estão jogando fora
tome aqui um pouco pra você
e vá comprar um bagulho
incomodar outro

Está nevando

cai langorosa
minh'alma
sobre as teclas
neva
sempre neva
mas 
e aqui dentro
o que importa?
ninguém ouve
batem nas teclas
não sabem dizer
cordas percussivas
triste felicidade
melodia aritmica
caindo e levantando
minh'alma
de necessários erros
não me acostuma
ao gosto do mesmo
está nevando
dizem as crianças
está nevando
minh'alma
sempre está
caindo
caindo

domingo, 20 de outubro de 2013

Amor

acabaram
os remédios

continuo
doente

Pedido de natal

Quero ser famigerado
                     e infame
Quero salvar o mundo
do heroísmo romântico

Quero que falem dos meus hábitos pela vizinhaça
                          criem lendas sobre mim
                     me prendam matando John Lennon
                                           ou homem que valha
Ser como injusto Nobre
com a benção de deus

Pedra Filosofal

harmonização caótica
equilíbrio paradoxal

Enamorados

Não os encontro
mas ouço-os
sussurantes
agitados
escondidos
somem
como vagas
distanciando-se
do litoral

Impaciente

Avançam os sinais vermelhos
já não tenho calma
para que o coro das cheerleaders
ordenem meus maus hábitos

conto até o infinito
e tenho calma,
para que chegue ao fim

Jam

O saxofone é um selvagem
espreitando o ritmo daquilo que o persegue
graves que conduzem à marcha até a guerra
ou ao encontro dos que tem muito a dizer

pura eloquência

jazz

domingo, 6 de outubro de 2013

Pesadelo nº 2 (allegretto)


   Crianças que desejavam não ter nascido alcançam o Nirvana
 O Mundo trata de apertar-lhes dentro duma Dama de Ferro

   Dom Quixote procura pela loucura que foi tragicamente tragada pela boca de lobo junto com a Realidade numa comédia de erros que levou uma vida inteira apenas com risadas de hienas que vinham dos Céus

   A paisagem era de '32 desbotada em codeina e amarelo-estático

  O Tempo se contorce num ataque epiléptico, problemas duma industrialização feita em coxas

   Deus e o Diabo disputam pela consciência vã e a piedade existente no mundo, casualmente debruçada sobre um-alguém

   Entre quatro paredes paranóicas baratas observam o lento apocalipse pela janela (sabem que sobreviverão) mas tem medo do porvir e assim se acasalam e multiplicam a sua espécie

   Em colégios garotos esperam para que o ponteiro dos relógios indique a hora em que cortarão seus sexos e as garotas cospem as sementes de Eva enquanto compram cigarros de puta na esquina

     Aos demasiadamente melancólicos há remédios para uma ditatorial normalidade humana 

     Uma folha de outono cai em pleno verão (ninguém entende o motivo)

     Pequenos anjos dormem deitados ao calor do pavimento frio da noite
   
     O suspiro de uma mariposa faz um maremoto

     Falam da moda no Japão
                das chuvas em Londres
                  enquanto o barometro
                   da sala da humanidade não funciona
                   e por mais irreal que pareça
                    está ali espreitando
                    a realidade.

domingo, 29 de setembro de 2013

Penicilina

por sorte ainda vivo
voltou pra casa

o cadáver do marido

sábado, 21 de setembro de 2013

O Melhor Poema-Chato

da antologia poética do poeta-chato


sou poema
e falo de autores malditos
e de assuntos astuciosos

uma palavra inventada 
                                    aqui
                                           e ali
metáforas piores
                           pra você entender bem
                                     o que não sinto muito bem

isso pra esconder
minha forma desforma
             de alguém que 
                                        não sente
                                        nem pensa

eu sou o poema bendito
                          benditamente chato
e apesar da extensão de mim
sei que restrito
            restrito
            restrito
                       sou dentro de um poetinha

                       muito pior do que o seu poema.

Cogito


Observo o teto deitado no chão. No chão do banheiro, do lado do trono. Batem na porta. Me levanto e  me avalio no reflexo. Que porra é essa na minha testa? Cacete. Viro a chave, saio e entra outro como eu.

As luzes piscam numa intensidade que torna tudo aquilo vejo uma longínqua e demora projeção de imagens. Como um filme em câmera lenta. Se é através do corpo que sou apto a sentir a realidade, sendo que os sentidos podem facilmente ser ludibriados, como terei certeza de que estou vivo? Tudo parece tão demorado e meu coração querendo explodir. Me vem uma vontade irracional de bater no primeiro babaca; mas não vejo algum.

Eu observo um reflexo no espelho. Tinha sua pele rasgada mostrando metade do crânio, os olhos arregalados e estáticos (sem as palpebras não podia escapar de não olhar). Sorri com os dentes serrados, era mesmo eu, entre os dedos da mão: uma lâmina. Com ela faço um corte na horizontal, no lado esquerdo do pescoço, que se abriu como um flor. O calor escorria pelo meu corpo. A visão se turva.

Passa por mim um babaca desesperado, como quem esta para se mijar. Perco-o de vista, mas vou até a porta do banheiro supondo que estava realmente apurado. Dou-lhe um soco na cara, que o faz cair batendo a nuca contra o chão. Olho-o e, talvez não seja o tal. Outro babaca chega correndo. Ele bate na porta. Ninguém responde.

Abro a porta, o banheiro está desocupado. Fecho a torneira que estava aberta. Na pia está a lâmina e a idéia contida: voltar ao inorgânico, à inércia. Tá ocupado, porra! Não enche!

Um ruído vai aumentando, aproximando-se, elevando-se de altura. Ossos ritmam contra a porta velha, trancada. A maçaneta faz seu inútil movimento. Os graves me invadem, rastejam pelo meu corpo, atravessando-me e saindo de dentro pra fora. Um grito afogado no vermelho. Não tenho mais corpo, ele não existe, muito menos possuí forma. Existe, e tem essa e outra forma, no sonho e na.

Antes do fim: o começo.

O idiota me olha do outro lado da porta.

Há um recado no espelho do banheiro, mas não consigo ler, as letras estão borradas dificultando qualquer tentativa de decifra-lo. Pode ser uma frase idiota, mas gosto de pensar que é um bilhete suicida, afinal alguém sempre morre e até uma frase idiota pode ser um ultimo recado. "Alguém morre",  é uma coisa tola para ser prevista. Uma coisa tola, que não preciso ver para acontecer.

Era como se me atravessassem e dividissem ao infinito. Como é estar eternamente morrendo? É como nada, nem pode existir, mas existe. Já estamos a todo instante morrendo, e nem sentimos também. Com todo tempo do mundo, abri um sorriso, saboreando-o como que pela primeira vez. O mundo não queria minha atenção e não me distraía; eu existia, diferente dele.

Abri a porta do banheiro, não havia ninguém. A torneira estava aberta, fecho-a. Para remediar o fedor, dou a descarga. Tudo parece tranquilo. Vasculho abrindo gavetas, encontro finalmente. A luz oscila.

Existo, ao contrário dele. Existo, mesmo que seja ele quem sou.

Caio lentamente até encostar no chão, o impacto me faz fechar os olhos como quem dá um mergulho. Observo meu corpo tentando se manter firme, parece não aguentar. Cai de joelhos (parece que está) implorando para que eu volte ao meu lugar, mas é tarde. O teto do banheiro não tem forro e não é mais problema. Meu sangue limpa o banheiro sem problemas. 

Com a gilete na mão, abro um caminho em meus dedos e com aquilo que escorre, escrevo meu ultimo recado ao espelho. São longas e entediantes, as despedidas.

Destranco a porta.

Dentes metálicos rompem e a morte delicia-se com o descontrolado fluxo, apaga-se num suspiro, dilata-se as pupilas. Marcha a erupção lenta. Se contraí, murchando sem rapidez.

Estou correndo, não sei para onde. Estou correndo. Há uma luz muito fraca, trepida em intervalos irregulares, dá pra ver alguém na distância, tão longe que parece um anão. Canso e paro de frente à uma porta lateral, aberta. Alguém esta lá.

Guilhotina

inflou-se a caixola
e a casca ressequida
deixou os miolos soltos

corpo diminuto mal se avistando
pernas tamanho de época
braços afunilados em história
são eles força de trabalho de quem?

exploração feliz
lucro faminto
muita teimosia
é escrever bobagens

bonito este poema
talvez nunca leiam

nada importa

só a influência das estações
que me trazem alergia
o inverno atual me lembra o verão

mas esqueci

foram extintas as estações

agora só existe tempo
mas não se sabe desde quando
sabe-se do resto
de uma possível esperança
de descanso em fuga

aproveito senhores (e senhoritas)
para anunciar que no oitavo dia
como protocolado ao título
desligadas serão as cabeças do corpo

esqueçam isso

avancemos com cavalinhos de pau
empunhando ferros
componham um hino
façam um quadro real
de todos os jegues em nós
as margens do rio tiête

se não tiver dentista até irei comparecer

não indo ao meu dever fui preso no quartel
entendia-se que marchava irregularmente
minha perna de pau é um alazão
(a outra segue religiosamente a época)

perdi

perdi
o direito à caneta e papel
mas continuava desenhando
nada em particular

somente cabeças tamanho GG

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Daniel e seus amigos imaginários

todo dia levanta
olha pro chão
o relógio tic devagar
sai na rua esperando não ver ninguém
os sonhos são seu único salvador
todos falam como fitas que foram gravadas
fitas que ele mesmo gravou
enquanto espera o tac
o desespero bate na sua cabeça
ele deixa entrar e sentar no sofá
o desespero acende um cigarro
de repente ele se sente cansado
eu me sinto cansado
a sala fica suja
o amor lateja
outro blues de outro homem desesperado
e as notas fantasmas pintam o céu sem cor
não há conforto na vida de um desesperado
talvez aconteça algo que deixe tudo melhor
que faça todos feliz
a sorte se foi
mas não fique tão triste
se recomponha
eu sei você está cansado
não importa
não importa
eu sei que doí muito mais do que antes
mas continue dando murros em facas
esvazie o vazio do peito
que não precisa ser ouvido
só precisa cantar e gravar
falar por todos nós
tudo bem?

Delírio Infante

eu a conheci no pátio da igreja
no estacionamento fomos casados
nessa época eu imaginava trabalhos
desenhando um futuro diferente

nosso filho, sarnento,
tinha cara de cachorro
e pulgas de estimação

ela se foi
num Uno branco
sem me dar um beijo
(só um discreto aceno)

nunca mais a vi

nos inquietantes dias de febre e calor
minha imaginação resgatava-a
empalada carinhosamente no hidrante
entre rabiscos das carteiras da sala

meu primeiro amor.

domingo, 8 de setembro de 2013

Poesia

O sal do mar
Nos olhos dos dorminhocos

O vento nas velas
Que sai da boca do menino

A pomba que não mofou no balaio

Aquilo que sem aparente motivo
Sem mais nem menos é

Dias de chuva

Tirando os dias de sol
nunca parou de chover

olhos rotineiros
todos são anônimos
nessa estranha familiaridade

Aqueles ali
dançam na chuva
de olhos fechados
sem guarda-chuva
desafiam os inseguros
e os conselhos-de-mãe

sei que é insensato
mas é preferível ir para casa
será longo o dia amanhã
como despedidas costumam ser

Bom dia!

Narciso

nunca tive certeza de quem era
apesar das fantasias denunciarem
esperei você me perguntar
e todos em mim responderam erroneamente
(menos eu!)
os espelhos me negavam a imagem
mas com o indicador firme em mim
entendi que sabia a resposta
era tão óbvio
estava escrito na minha testa
tão óbvio
idiota

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Educação

Os tapas que levei um dia
Não revidei por fraqueza
Mas me enganei ao dizer
Que seria diferente de você

Hoje guardo teus tapas
E dou eles a outros

Catequese

O retrato de Maria
segurando Jesus
me julga culpado

a consciência
é inafiançável
no Inferno

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Cigano das Pulgas

 A primeira vez que fui ao mercado de pulgas com meus familiares, foi graças ao meu tio, atrapalhado e não muito benquisto pelo meu avô, frequentemente interrompia nossos almoços dominicais para contar suas longas prosas; discutindo sobre como os pistões dos carros funcionavam (coisa que vovô quase sempre discordava em grave tom), ou o dia em que decapitou o dedo do pé, e ainda como ele possui (transplantando) um tendão de bode na coxa; neste dia em especifico conversara com meu pai sobre os negócios que havia feito com um cigano no mercado de pulgas:
 fumos vindos da índia, aparelhos de procedência duvidosa, antiquidades da guerra, também chocolates belgas, e veja este relógio de pulso Russo, dizia o perna-de-bode.
 Queria ver os tais vendedores de pulgas, entendendo que lá estaria o circo de pulgas, imaginando pulgas em suas profissões circenses, malabares com fogo, mímicas e entre outras performances. Me envolvo com a imaginação; logo, protagonista de ficção. Já não basta ser desta?
 Naquele mesmo dia, meu pai nos levou para a feira, estávamos em meio a vários comerciantes que vendiam as mais diversas quinquilharias, músicos com instrumentos raros, que nunca mais revolvi a ver.
 Vovô avisara para não confiar em comerciantes, pois estes se alimentam da crença em suas lorotas. A comida lá cheirava muito bem, perdendo somente para a macarronada de domingo, e certamente, ganhando das polentas com frango. Em geral, tradições que foram se perdendo e que atualmente não é mais possível encontrar com o mesmo vigor. Algo a ver com a minha geração talvez.
 Havia um senhor com uma caixa, rodeado por porção ingrata de espectadores fixos; cada um por uma espécie lente. Atenção: aparecia uma pulga. Só podia ser! Estavam todas escondidas no caixote. Em meio a multidão você pode se perder; ela me prendia firme pelo pulso.
 Na primeira olhadela que mamãe mamãe deu nos diversos tapetes orientais, incensos que coçavam o nariz, esculturas em madeira; e Papai, distraído, fumava cigarro com outros moços e riam-se sozinhos, escapei! O cigano me deu uma banqueta para que eu pudesse assistir.

 Petrus acabara de acordar de seu eterno sonho de marionete, e já estava ofegante por ter uma vida e encher os pulmões com ar. Levantou-se do assoalho daquele vertiginoso salão em festa. Dava para sentir o quarteto de cordas latejar no peito. Era o mais encantador som que já houvera ouvido, enquanto vivo. Tudo bem, ele só havia poucos segundos de vida, mas sabia aprecia-los.
Dançava com seus duros, rígidos e quadrados movimentos. Meio ridículo e desengonçado, certamente. Avistou, pelo rabo do olho, um borrão; que tanto poderia ser uma mosca, como uma moça. O borrão se tornou mais encantador do que a música. Quando no foco de sua visão formou-se a bailarina, que tinha uma boca, um nariz e dois olhos. Petrus não se acanhou. Ficou tanto tempo compenetrado no sonhar-acordado, com o olhar estático nela, que foi impossível que não reparasse naquele sujeito de alguma forma cômica, de expressão meio boba e que falava ela para si e para quem quisesse ouvir.
 Por instantes, enquanto dançava; pois dançar era tão natural quando respirar era (ou começou a ser), também fixou-o olhar. Entrelaçados os olhares, esboçou-se um sorriso dela, que ressoou nele como um sino. Corpo todo tremia, e, sem entender bem o motivo, sorriu. Aconteceu o que eu nunca poderia sentir. Queria ir até ela, para. Só queria ir, mas o salão sanfonava a cada passo trépido em que os pisos giravam em padrões branco e preto. Queria.
 Chei'de vontade, ele caminhou: um, dois, três, quatro, sete passos. Sublimou-se. Deu meia-volta e ficou parado, de costas para a bailarina. No momento, um senhor de pele queimada, que estava a observar tudo; um bonacho, que fumava charutos com folhas de mais de oito palmos e que por algum motivo usava um bigode falso, lhe entregou uma taça de confiança envenenada com distração e um pouco de desespero, também lhe ofereceu um trago demasiada confiança, falou algumas palavras para solidificar toda aquele fluído sublimado em gagueira. Desengravatou o nódulo. Finalmente, fez com que  ficasse chei'de si, que deu novamente meia-volta, não avistando a bailarina.
 Perguntou numa roda de três senhores, se eles haviam visto uma garota de uma boca, um nariz e dois olhos. O primeiro Senhor balançou a cabeça da esquerda para direita, o segundo Senhor balançou de cima para baixo, e começou a falar:
 — Um romeno sujo, pele marrom, ouvir deve-se não que palavras, deve caso ouvir não se confiar, ganhou o jogo de cartas: 1 caixinha de música (que portava bailerinazita, dançava ao som de uma música sem fim por suas engrenagens. Romeno de espetáculo itinerante, fez da jovem bailerina uma de suas atrações, que incluía uma guerra civil de bonequinhos de chumbo, marionetes que apresentavam peças de teatro, pulgas contadoras de histórias, entre outras coisas absurdas. — Pausa para respiração; prossegue: — Todo ano o romeno fazia uma festa com todos os seus empregados, que acabavam por ganhar vida, e se divertiam sem saber que a própria festa era uma espetáculo improvisado do traiçoeiro, apresentada para seus clientes mais ricos. Dizem que esse é o espetáculo que mais o fazia lucrar no ano — Concluiu triunfal, o Senhor 2, como se tivesse decorado um texto teatral com plena desenvoltura.
 Petrus sem entender muito, observou o terceiro senhor que fazia um gesto com as mãos, sugerindo a loucura óbvia de seu pobre amigo.
— Senhor sabe de algo? — Parou com os gestos, apontou o dedo para o quadro e seu limite de arestas da sala.
 Foi o que fez:
 Atravessou a porta e estava na coxia de um palco escuro. Ouvia-se os sussuruídos e coxixos. Apareceu o senhor dos ilegítimos bigodes, aquele que mesmo do. Deu-lhe um empurrãozinho gentil. Petrus caiu de cara no tablado. A vermelha cortina, em trapos, se abriu. Mil olhos de onde só se viam a claridade dos dentes, e se ouviam o mexer dos panças miúdas e as gargalhadas. Reconstitui-se ligeiro. Fez uma pose, botando a perna esquerda na frente da direita, com as mão apoiadas na cintura. Esperava um sinal, como um alarme ou sineta. Mas e se o sinal já soou e ele não estava prestando a atenção necessária? Inverteu: botou a perna direita na frente da esquerda.  A platéia arremessou a palavra: Bobo. Percebeu que deveria fazer algo, fosse o que fosse, que pelo menos fosse algo além de estar com as mãos na cintura e com um pé diante do outro, esperando para que algo acontecesse.
Inexperiente, começou a falar. Mas não tinha voz.
 .
O.

 Correu até o outro lado da coxia, entrou entrando no escuro que ascendeu num quarto enorme. Sentou-se na cama (próximo a um baú), sem prender-se nos detalhes, abaixou a cabeça e pouso-a nas mãos. Esvaziava os pulmões: como doía estar vivo e perdido. O quarto tinha as paredes pintadas com o azul do mar, e, acima da sua cabeça adquiriam a tonalidade das profundezas marinhas até o teto, onde tornavam-se quase negras; e em todos os cantos havia estrelas e mais estrelas. Tão compenetrado em suas mágoas, não ouviu a porta. Não conseguia se sentir acompanhado apesar da quantidade de estrelas ao seu redor. Ela afagou lhe os cabelos lentamente, beijou-lhe suave como brisa.
 A primeiro momento assustado, levantou a cabeça sorrindo. Respirou longamente, estava pronto para. Um estampido de tiro, os empalideceu. Saíra do baú, e vinha de um boneco de chumbo, que segurava uma muleta na mão esquerda e uma pistola na direita. Acabara de voltar da guerra, alegava, e retirou da carteira, tremilicando as mãos (com a pistola entre os dentes e com a língua pronta para disparar no menor movimento), fotos 3x4 da bailarina e de sua família, crianças belas e feitas chumbo maciço. O soldado em lágrimas, soluçava. A língua escorregou, o disparo aconteceu. Uma mão surgiu do telhado que se abriu. Havia uma porção de grandes olhos atentos. A mão pegou-o do assoalho com brutalidade. Gritava mudo, sofria como um mímico, enquanto era jogando numa caixa escura. O cigano colocou o bigode falso, sorriu e me piscou o olho sinistro. Estava irreconhecível. Quando lhe pedi para que o libertasse, "para que vá ao médico", implorei. Abriu a caixa e tirou um fantoche molenga, "está vendo, não esta morto e nem pode um boneco morrer", disse  seco e cínico.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Oficina do diabo

a santa Loucura
(virgem puta) nasceu invisível aos destreinados olhos
e
está presa
(disponível)
à orelha esquerda
de quem quiser a ouvir

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Quiromancia

Nas palmas da minha mão
estão linhas que se entrelaçam
com as ruas da cidade
olhe bem o asfalto rachado
perceba nele as minhas rugas
ouça nas sirenes os meus gritos abafados
no calor da chuva o meu suor
perceba jogados no chão meus sonhos
que se prostituem por uma droga barata

Onde começa o universo e acaba meu corpo?
existe um traço que delimite?
existe algum acorde que sustente?

Desmaio na falta de limites
entre o chão e meu corpo
torno-me paisagem

Peixe fora d'água

Foi fritando uma tainha nos mês de junho; empapando meus bigodes de gordura, recordei do pedido do meu falecido Pai, que só a pouco pude encontrar resposta. Foi necessário ir aos melhores terreiros, também recorri a sabedoria oriental, e mesmo assim insatisfeito, tive que esperar que o senso comum aceitasse as explicações da física quântica, e o mundo das idéias onde a ilógica é forte. As pesquisas etnográficas de tribos xamanicas, deram suporte aos meus relatos, estarão disponíveis no apendesse (que somente será liberado, caso compre os direitos da minha obra na integra).
Pra poder responder meu finado Pai, tive que acessar minhas essências, através de meditações e uso de plantas estrangeiras (o conhecimento lotófago, foi primordial). Descobri que já fui español, português, inca, tuaregue, e acredite se quiser, tigre, quero-quero, preguiça e peixe. Minha esposa fora alguma francesa louca da revolução, condenada como herege e julgada como bruxa, queimou em fogueiras, entre outras torturas medievais sofreu. Provável que nessa época, eu fosse um vilão, ou coisa aparecida, mas prefiro evitar qualquer otimismo, ou até mesmo o contrário. Felizmente, aceitamos muito bem nossas diferenças e loucuras, apesar dos extintos opostos que temos: eu, peixe fora d'água e ela, felis inovencilis.
É verdade, fiz grandes descobertas, mas não pude ir mais longe, mais longe de mim mesmo. Não posso alcançar a distância infinita da geração-universo de meu pai; por isso, encerrei as pesquisas, insatisfeito, obviamente. As respostas eram negativas, porém a pesquisa até que serviu para ganhar alguns cruzeiros.
É necessário um pouco de sombra para que as formas sejam realçadas, um pouco de desconhecimento para que o conhecimento tenha um pouco de brilho. Mas meu pai tenho certeza que se não foi um bárbaro, foi pirata. Não, não posso afirmar, mas afirmo. Eu sinto que foi.
De qualquer modo, foi fritando hoje, que pela janela observei duas crianças: (à priori) meus (se é possível ter posse de algo), como dois ursos selvagens, índio e cowboy, alienígena e astronauta, e não era de assustar que os dois corriam como dois garotos hippies sujos, cheios da maior graça que podiam ter. Tinham as pupilas como sóis, queimavam em pureza. Me apressei pra pegar a câmera e registrar o momento. Os dois se abraçaram sujos de lama e suor, com os sorrisos de janelinha aberta. O mais novo estendeu o braço: o bom-e-velho simbolo da paz. A impressão revelada não seria muito diferente de uma tirada dos anos 70'.
Não tardou para que filha mais velha aparecesse o cabelo curto, pintado de preto, a maquiagem borrada embaixo dos olhos, os coturnos escuros, a calça de couro, camiseta mais larga e um penduricalho triangular roxo na orelha.
Estaria a desafiar minha autoridade? Provavelmente sim, sou um pai, e é de minha natureza ditatorial que se protegem os filhos, ao mesmo tempo que não posso controlar o devir (e quem pode?).
Ela reclamara do peixe frito, dos gases na camada de ozônio, das desmatadas florestas, da fome no mundo, reclamava de tudo, mais indignada não poderia estar.
Tento aliviar: digo a ela que a vida é injusta, e que na minha casa, que na minha casa (o pensamento foi interrompido).
Ela reclama da vida injusta.
Não posso fazer melhor, além de sublinhar. Mando ela experimentar a tainha(!).
Ela me da as costas. 
Me ignorar é a maneira de sair por cima. Falando assim pareço um lunático. Talvez seja. É da natureza da humanidade. Não me estranha também a loucura da minha familia. Onde estará a minha esposa? Surgiu agora, com a maionese na mão e com o celular grudado na orelha, gritou pra Oswaldo  e Mário lavarem as mãos, também veio me informar o que havia feito de errado; chorava nossa filha, por minha culpa.
"Culpa minha?", recrutei e fingi que não. Ela me olhou (não lhes contei que ela é uma leonina?).
Mas que descaso, ser pai nunca foi fácil. Hoje ou em qualquer galáxia. 
Emulei uma subida pelas escadas.
"Filha, eu sei que você procura uma identidade, mas não é se opondo a mim que você vai descobrir quem é, ou melhor é assim que você descobre quem não é. É descobrindo quem você não é que você começa a me odiar. Não, não era nada disso. A vida é injusta pra mim e pra você. Olha, eu nem sei quem eu sou também e agora não sei o que estou fazendo. Ser pai nunca foi fácil e um dia você vai ver, quando tiver que descobrir quem eu realmente fui, pra pode você também ser mãe. Bem, esqueça tudo o que eu falei. Sempre bom ensaiar os discursos no espelho. O reflexo sempre fica bem perto do rosto e da até pra ver.  Da até pra ver, da até pra ver o vazio."
Sem tempo para cíclicos ensaios, veio brisa leve que anunciava — OS MALDITOS PEIXES! — como exclamava, irresoluto, pelos séculos a fora; o pai de todos os filhos, o pai que esqueceu que é também filho: um pai por fim, ou por fim um pai frito.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Satisfeito

bom mesmo
é quando um dia dura uma semana
os relógios não contam nada para ninguém
e os ponteiros só servem para palitar os dentes

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Analítico

Tenho muito observado
       e pouco feito

Minha maior qualidade
 meu maior defeito.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Relatos psicografados, seguido de um depoimento gravado em fita.

Era feito de cores monótonas aquela sala em festa. Eu estava sentando ao chão, um velho costume. De fronte ao shisha, pessoas em pé me cercavam, algumas bebendo e algumas outras falando, mas definitivamente todas fumando. As paredes eram todas brancas, de uma decoração minimalista, nada de exageros, com exceção dum quadro horrendo pendurado na parede. Que eu apreciava com o olhar de um cãozinho que espera o afago do dono. — Havia mais sinceridade na fumaça dos cigarros do que nas palavras cuspidas. Eu novamente me encontrava só, ao redor de tantas pessoas e não havia pelo menos um drink em minhas mãos para me abstrair da paisagem que me consome como um narcótico. Na cozinha, abri a geladeira branca como se fosse o anfitrião. A primeira garrafa que vi foi a de rum branco. Um pirata feliz e um papagaio sobre o ombro no rótulo. Quem me dera um papagaio e um tapa-olho.

Não sei, o que me atraiu nele? Foi o olhar melancólico? Talvez o jeito desinteressado e desgostoso que soltava fumaça pela boca. O silêncio. Ou era indiferença que tinha pelos presentes? Acredito eu, que fosse o aspecto sem forma, de quem não se encaixa, de alguém que eu não saiba nada e não quer saber de nada. Talvez, o jeito em que segurava a garrafa numa das mãos e na outra um copo. O jeito que olhou para o rótulo e abriu um sorriso. Com certeza, eu queria devorar o mundo que estava dentro daquela cabeça.

—  Vai beber tudo sozinho? Porque não dividi isso comigo.

Quanto tempo ela estava a me observar? Será que viu quando eu bebi do gargalo. Quem se importa? Peguei um copo pra ela e o enchi. Ela me observava fixamente. Entreguei o copo na sua mão, ela mexeu os lábios sem fazer ruído: "obrigada", disse. Sentamos à mesa da cozinha. Ela tinha os cabelos loiros e a pele clara. Não contrastava com a casa, mas contrastava comigo. No seu rosto estava desenhado um triângulo equilátero: duas pintas abaixo do olho e uma solitária pinta na bochecha. Ela fez uma expressão irritada, aguardava uma pergunta minha?

— Gosta de rum branco?
— Não muito. Na verdade, qualquer coisa já tá bom.
Nesse momento, não estava falando do rum.
— Tá gostando da festa?
— Pra falar a verdade, não. — Abriu um sorriso sincero. Existia uma leveza naquela situação.
— Costuma sonhar? — Ela pensou um pouco, como quem faz uma estatística.
— Acho que sim.
— Já teve vontade de matar alguém?
Houve um breve silêncio, logo ela, rindo, respondeu:
— Não seja tolo, claro que já. — Bebemos o nossos drink, desviando assim nossos olhares. Vi ela, que observava curiosa meu gogó enquanto bebia. Desviei os olhos pro pescoço, descendo. Não eram fartos, como costuma fantasiar a maioria dos romancistas mas.
— Você tá a fim de dar uma volta?
Ela ainda estava bebendo e quando terminei de falar a sentença, apressou-se para responder:
— Vamos!

Havia nele uma singela sensibilidade para um diálogo esquisito, pra não dizer ruim. A proposta que ele havia feito, eu esperava por algum tempo (desdo começo da festa). Não podia recusar, ou não. Será que, aos botões, ele ouviu o que estava dizendo? Quem se importa! Apressei-me, sequei o copo. Ele fez o mesmo. Abri a geladeira da mesma maneira que ele havia feito, peguei a garrafa e saímos daquela casa imunda. Eu imaginava que ele dirigisse algum carro esportivo com teto solar ou um conversível que ele usava pra cruzar a autoestrada rumo ao desconhecido, mas uma lata velha com motor à diesel, convenhamos. Pelo menos era bem cuidada, o carro tinha um cheiro de tiozão. Eu nunca gostei de príncipes encantados. Ele não havia dito uma palavra. Isso me incomoda. A única coisa que fez além de dirigir foi ligar o som.
— Gosta? — disse ele.
— Do que?
— Da música.
— ...Sim, nunca tinha ouvido.
— É eu também.
Algumas coisas se diz apenas por simpatia mesmo.

Ele estava compenetrado demais no transito e ela à deriva.

Se ela entrou no carro então deve estar preparada. Ou será qu'eu devia perguntar? Ela já deve desconfiar. A música pode abafar o silêncio mas nunca calá-lo nada pode calar o silêncio. Calar o silêncio? Que tipo de devaneio estúpido é esse? Ela parece uma daquelas niilistas. Daquelas que roubam o namorado da irmã e abandonam a casa dos país para viver como uma junkie ou qualquer coisa assim. Alguém que não quer ter a voz abafada. Não quer ouvir o silêncio do mundo quer berrar bem alto mandar todo mundo ir pra PUTA-QUE-PARIU!

— Me lembrei — disse ela. Ele olhou com uma das sobrancelhas levantadas — me lembrei do sonho que tive. Eu estava dentro do vagão do trem. Não-sei-bem onde, foram-me rara as vezes que entrei dentro de um. Estava escuro, acho que era de noite. Havia um olhar sobre mim, era um olhar pesado, sabe? Aquela sensação desconfortável de filmes noir. Eu olhei para trás e era um homem que tinha metade do rosto encoberto em penumbra. Era um homem que tinha estampado no rosto um sorriso de sátiro. Acredita em acaso? Não importa. Esse homem se aproximou de mim e sentou-se ao meu lado, sussurrou no meu ouvido: Eu pego ele e mato. Parecia um pervertido sexual. Nojo só me recordar.
— Freud explica. Mas não entendo nada de sonhos, pra mim são todos non-sense.
— Assim como a vida? — respondeu ela sorrindo.


Eu não sabia responder, se:
 a) aquilo havia sido um sinal
 b) ou não
Mas o sonho lembrou de alguma notícia recente, acho que, sobre um tarado que andava nos ônibus e nos trens que, em garotas alheias, ficava esfregando o.

Não respondeu a minha pergunta. Impaciência, procurava algo. Algo pra me mostrar e falar.
— O que cê.
— Estamos chegando lá.
A frenética paisagem urbana. Estamos num bairro nobre.
— Aonde vamos?
— Já vai ver. — Abriu o porta-luvas, pegou o óculos escuro e.
— MAS QUE MERDA É ESSA?
  Ele riu.
— Até parece que nunca viu uma arma — Eu tremia, ele continuou falando.

Entrei no drive-thru. Sei que não era o horário apropriado. Se bem que nenhum horário é apropriado.
— Quer algo pra comer?
— N-ão.
— Ok, eu vou pedir.
Me virei pra atendente, fiz o pedido.

Eu queria correr, abrir a porta e fugir. Mas estava longe demais de casa, o conhecido mais perto seria meu ex. Prefiro ficar aqui. E se ele resolvesse me matar? Seria simples, um tiro e tudo estaria terminado. Teria um pouco de sujeira, mas, nada que ele não estivesse acostumado a fazer. Aposto até, que, deve ter alguém que trabalha com essa espécie de limpeza. Não importa, seria simples. Ele recebeu dois pacotes: o primeiro com hamburguer, batata frita e refri, o outro tinha uma embalagem plástica preta, lacrada.

Rasguei o plástico com os dedos. Folhas e folhas com informações inúteis.

— Uma coisa que eu acho engraçado da humanidade é que, sempre fazemos coisas inúteis, por exemplo: imprimir numa folha um aviso sobre o desmatamento de arvores. Sendo que as próprias...

Aquele blá-blá-blá inútil dele era pior do que receber um tiro.

O endereço era do outro lado da cidade, a vítima? FODA-SE o que ele fez, ou deixou de fazer, ou pior, quem ele é. Não tenho saco pra ler essas biografias mal escritas, que o M. gosta de narrar pra secretária. O que ele espera com isso? Compaixão? Sentimentalismo? Se bem que ele deve se divertir narrando.

Enquanto ele dirigia, comia e falava besteira, constantemente falando: "quer um pedaço?", "fritas?", "um gole?". Aceitei o gole e a fritas. Lembrei que ainda havia aquela garrafa de rum. Misturei com Coca.
— Cuba libre!

— Sabia, que no México eles só chamam de Cuba?

De novo: informação inútil.

— E em Cuba só se chama Libre.

Ela tem um péssimo senso de humor.

Chegamos ao local. Um casarão de esquina. Casa de swingue, não é o nome apropriado, o correto seria, parque de diversão para adultos, muito melhor assim. Parei o carro na calçada. Olhei pra ela, parecia meio tonta. Me olhei no retrovisor: agora ou nunca.

Ele abriu a porta e foi indo em direção à casa. O que faço? Sigo ele. Fico aqui. Sigo ele? Fico aqui?

Ela veio correndo, parecia desesperada. A arma estava no coldre. Abri a porta e fui entrando. O lugar era bem iluminado, uma recepcionista usando um vestido vermelho longo, de cabelos cumpridos, lábios carnudos. Me perguntou se eu tinha hora marcada. Respondi que estava ali a negócios, que havia chego uma leva de garotas da Croácia que.
 — Você está atrasado senhor — Ela procurou o nome na lista.
 — ...
 — Me acompanhe, por favor

Tinha um cheiro esquisito, me dava um pouco de medo aquela decoração. Alguns homens de terno, abonados, cagavam dinheiro. Passamos por uma sala, onde havia uma mesa de vidro e fileiras enormes de coca. Outra, com uns quinze homens ao redor de uma loira e uma asiática, eles uivavam em êxtase, arremessando dinheiro como quem alimenta os pombos. Em que parte do universo estou? Não posso ficar muito longe dele.

Não faltava distrações, nem perversões. Aquela loirinha de pelos dourados, ficou pra trás, junto com os playboy. Lembre: você está trabalhando. Desci as escadas que davam para o porão, ela abriu a porta. O lugar estava mal iluminado. Se ouvia o chicote cortar o ar, e num estalo macio e áspero tocar a carne, um grito de prazer sufocado. A única coisa que reluzia era o látex da roupa. Um-alguém, como um cachorro, estava sendo sodomizado. Gritava de dor ou prazer?

Ele perguntou quem era. Ninguém respondeu. Dois estampidos secos reverberaram pela sala, junto com um flash muito rápido. Acenderam a luz, e tava lá, um gordo com roupa de látex, deitado no chão, sangrando e agonizando.

Tenho que dar o fora daqui, acho que matei o cara errado. Matar todo mundo? Supudondo não deixar provas. Que bosta, aquele é o cara.

QUE HORROR! Disparou mais uma vez e acertou a cabeça de um. Era possível ver a massa visceral espalhada pelo chão. Um vermelho vívido pingava. Comecei a me sentir enjoada, uma sensação de desmaio.

A babaca não parava de gritar e parecia pálida.

— Vamo dar um fora daqui! Vamo dar o fora!!!

Ela não respondia nada, tinha o olhar petrificado, perfurado pelo projétil. Puxei ela pelo braço. Fomos voltando. Um segurança surgiu, me telegrafou um soco à metros de distância. Com uma rasteira derrubei-o no chão, outro tiro. Segurei mais forte o braço dela, e puxei até a saída. Entramos no carro, estava fácil demais. Queimando pneu, sai em arrancada. Abriram a porra da porta do bagulho e saíram nos alvejando. Um dos tiros acertou a lataria da caranga. Filhos da puta! Corri pelas ruas mais estreitas a fim de fugir. Eu não tinha pensado numa rota de fuga. O improviso faz parte. Mas teria sido útil ter pensando sobre isso antes. Um segurança me perseguia de moto, destruiu o retrovistor com um tiro. Caralho! Foi depois de entrar na contra-mão, atravessar semáforos fechados e ser fotografado por alguns radares (QUE MERDA!). Consegui despitar os viados.

Ele recebeu uma ligação logo depois da fuga. Era o chefe dele, parecia calmo. Não perguntou sobre nada, só disse que queria vê-lo. Demos mais algumas voltas. Fumava cigarro atrás de cigarro e bebia o rum puro. Não queria abandonar o carro velho. Fomos nos afastando da cidade, em direção a periferia. Não sei dizer exatamente onde, até porque não conheço bem a cidade. Quanto tempo estou aqui? Dois meses. É vim de Curitiba. É lá as coisas são diferentes. Não sei explicar. Não sei. Já disse que não sei. Olha, você vai deixar eu terminar a história? Ele parou o carro numa esquina. Três minutos depois apareceu um menininho moreno, com as roupas meio de desbotadas, estava descalço e nos pediu um cigarro. Eu não fumo, deixa os dentes amarelos. Ele também recusou a dar cigarros. O menino saiu. Surgiu um carro preto fosco. Não entendo de modelos de carros. Sei somente que era preto fosco. Ele encostou do nosso lado, abriu o vidro, pediu para que seguíssemos. Ele ligou o carro e fomos atrás. Pra piorar a rádio tocava um sertanejo universitário. Entramos num garagem, cheia de peças de carros desmontadas e cabos de ferro imensos. Ele mandou eu ficar no carro, mas na hora que ele abriu a porta. Eu não pude ver, só ouvir. Depois disso eu não lembro de mais nada. Acho que desmaiei. Não sei bem o que aconteceu. [...] Sim, esse da foto é ele. É acho que era roubado o carro. Eu já disse que não sei. [...] Quando vou poder voltar pra casa moço?

Decoração

o fantasma de vovô
continua pedalando
na bicicleta inerte

sábado, 13 de julho de 2013

Outono (Vinho)

Folhas de 
tentações secas
amareladas 
e outonais
pontilhando
quarta
quinta 
e sexta
dos dias 
sete 
ou oito
folhas

quarta-feira, 3 de julho de 2013

?

Sou a constante negativa positiva
as duas respostas corretas
que o contrário se deixa pensar
a aranha que se move na água
ou um extinto animal
de uma espécie comum
atleta perseguido
pela sua preguiça
e despreocupação
com o espetáculo

meu único objetivo
é o caminho de hoje
apesar de impreciso

se os erros levaram
a humanidade evoluir
escrevo e sobrevivo
enquanto isso for um erro

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Ligação à cobrar

Hoje é teu aniversário
espero que tire o dia de folga
e que  não atendas as ligações à cobrar
(mesmo que seja minha)

aproveite pra desmarcar compromissos
atrasar o ponteiro da responsibilidade
afrouxar a calça da imperatividade

                     — Garçom!

Aproveite o momento para ser feliz
(Eu juro que haverão outros)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Campeonato mundial de par ou impar


 com o passar do tempo
as jogadas tornaram-se outras

e eu continuei sendo o melhor
 dos perdedores

domingo, 9 de junho de 2013

Natureza Morta

Tudo escorre numa ausência. Um ponto, de longe: nada; que se estende, se alongando numa folha branca em que uma mancha de tinta, ou pingo, na verdade uma combinação de pequenos pontos que deslizam: dançam, desenhando formas secas. Se puder ver melhor, verá que é uma rua mal iluminada, um beco. Não, não. Na verdade nada, só letras impressas. Se pudéssemos ouvir um grito, uma apelação, uma exclamação, que se emudece por uma mão. A angustia do silêncio, que não ouvimos. Porque são apenas linhas, e linhas são inofensivas; elas abrem uma porta, fazem uma paisagem, continuam marchando até um plano de fuga. Um garoto sentado, num bar, numa casa noturna. Tanto faz. Não se ouve direito, nem se vê. Não se entende porque. Ele havia pedido um sanduíche, desses que tem nome de artista famoso ou de uma banda dos anos 60, compreensivelmente tinha um corte de cabelo de tigela, lembrando vagamente um beatle. Batucava com os pés, que se revestiam de um sapato preto de bico quadrado, um ritmo frenético: esperava seu sanduíche, que era preparado na cozinha.
Nas caixas de som: uma banda alternativa-moderna, inova em fazer porcaria. A música se misturava com palavras alheias, abafadas pelo calor. A iluminação relaxava e excitava as pálpebras, da cozinha emanava um cheiro de fritura e assado, vapor e mais calor. Os dois cozinheiros; um deles gordo, de cabelos escuros e bem umidecidos em gel ou vaselina; me abstenho dos detalhes divertidos; outro era um magrelo loiro, de dentes bem avantajados que servia mais como garçom e auxiliar de cozinha, não chegando nem perto de tocar na frigideira. Este ultimo rapaz, Hugo, resumia suas ações a se esconder da vista do cozinheiro saliente e também do patrão. O cozinheiro que teve boas intenções no seu passado, quando ainda acreditava em papai noel ou quando o real tinha o mesmo valor que o dólar; não era também dos mais trabalhadores e sua vontade, bem. Limpava a testa com as mãos fazendo cair gotinhas salgadas, perdidas e perversas de suor sobre o lanche bem preparado com 150 gramas (contadas, com muito orgulho, pela balança desregulada) de carne natural. As músicas da época, o incomodavam, e seu humor invariável o impedia de servir a clientela; por isso, gritava evocando o auxiliar palerma, com um urro cavernoso e percussivo. Do lado de fora, protegido do calor, mentalizava o pedido dum isqueiro alheio, mas o chamado do inferno só não era mais rápido que um raio; como também sufocante e imperativo. Acabou suspendendo os poderes psíquicos, voltou a seu posto.
Ainda na mesa, agora mais angustiado do que antes, torcia o pescoço. De tempos e tempos consultava o relógio, e quando reuniu forças, matou no bico a cerveja. Chegara Hugo com o pedido. Ele abre a fatia superior, investiga os vegetais e observa perplexo aquela roda achatada de carne. — Mas que diabos? Uma vaca é morta,  — porque é do cotidiano morrer; depois é esquartejada, tem as suas partes mais inúteis transformadas em utilidades industriais, a carne seria a parte mais valiosa (será?). Imaginava bifes suculentos cirandando em cima das chapas, rolavam na farinha e paravam entre duas fatias de pão e uma floresta pobre de vegetais. Não seja você a pensar nos direitos bovinos ou na divina providencia dos vegetarianos. Ele levanta os óculos de lentes amarelas circular, que prejudicavam sua visão, em completa contemplação. Voltando a seus afazeres, Hugo expele silenciosos gases, a ciência de que existe informação em demasia e que aquilo não será nenhum terrorismo, tornou-o seguro (por aquele momento). 
Em revoluções de horas (depois de:
coletar o óleo em latas de conserva;
se alimentar das sobras;
jogar o lixo na rua;
trocar a roupa;
receber a gorjeta do patrão e
 de brinde comentários de escárnio
 que tropeçavam entre
os dentes sujos de tártaro e lábios secos;
finalmente, finalmente) andava pelas ruas desertas, não encontrava miragem de vida ou coisa similar. Na verdade encontrava somente miragens de vida, nada mais. O cigarro apagado era vítima do acaso? Se o jogasse no chão, desistindo do vício, faria a festa dos ratos. Mas sem fogo, teria que aguardar. — Que um hidrante pegasse fogo!— (ou que encontrasse fogo). Entrou em duvida se pediria o isqueiro pra alguém fumando pedra. Pediria ou não pediria? Titubeava a na sua cabeça. Não pediria, pois a apesar da distância de seu quarto (infeliz morador duma república, que é a casa de todos moradores igualmente, e se possível em menor quantia dele), porém já estava longe de aceitar a possibilidade. (— Não pedir?) 
Longe, aquele mesmo rapaz estranho de cabelo de tigela, se encontrava sentado em algum banco, com outros rapazes da mesma. Poderia dizer que todos ali formavam uma banda, ou que pelo menos tinham a parafilia de vestir com toda a pomposidade e a garbosidade de um rock star. Repare: a decadência era virtuosamente bem copiada, chegando a maestria de se passar por original, porque decadentemente eram muito melhores que os videos de má resolução vendidos por ai. Estranho ainda não terem criado um nome, ou um estudo para tal comportamento (fica aqui minha idéia pra você estudante e futuro pesquisador das estranhezas). A maçã tinha um furo em diagonal; segundo cálculos, fora bem projetada; aparentava um cachimbo (c'est a pipe), porém o furo não era estreito, deixando a bagana frouxa. Depois totalmente abraseada, desistiram e a maçã seria o próximo alvo. Vorazes dentes cravavam as novas formas da fome. Havia um assobio nas ruas, e no momento uma moto passaria em alta velocidade. O ruído se mescla ao som: um canto gregoriano que rodopia e se aproxima juntamente com um vento gelado, torturante aos mais sensíveis e que fez marejar os cansados glóbulos oculares. Veio do grupo, uma pergunta: Vamos ou vamos?
Uma moto passava por Hugo, e arrotava pra ele seu nome. "Ter que cuidar pro garoto não fazer cagada na frente do patrão e foder com todo mundo é osso demais. Sendo que ele fede (ele?). Parava com a motoca na esquina desses puteiros do centro. Buzinava, descia logo a sua. Gostava de apanhar, de ser chicoteado, mordido, queimado, rasgado, arranhado, mutilado, xingado, lambido, apertado, apunhalado, afagado, eletrocutado, asfixiado... Ejaculava gritando de prazer e ódio, se ajoelhava sujo de gozo, beijava os limpíssimos pés de Beatriz. Deitava-se, como um leão abatido, em posição fetal no chão e chorando sonhava de saudade da mamãezinha. Este era o único momento em que ficava fora do útero. Desprotegido da sua hermética carapaça, como se nunca percebera quão cruel e injusta fosse a vida. Pobrezinho, a tatuagem e a barba, eram signos que tornavam mais grotesco o ato. Mas terminado isso; o cochilo, o fetichismo mercantil (que anula qualquer relacionamento humano lembrando os não-diálogos no caixa do mercado). Ele é um cliente e ela. Queimando borracha no asfalto, ia se afastando de si; sentido que: quanto mais vivo, menos dinheiro se tinha e quanto mais morto, mais feliz se era. Ou alguma tolice similar, guardava seus aforismos imaginários que se desmanchariam com o tempo. 
Hugo acenderia o cigarro, mas não faria comida para não ter que lavar os pratos sujos. Dormia também sem tomar banho para não acordar ninguém. Apagaria a luz do seu quarto e sem trocar de roupa deitaria. Levantaria, ligando o som no bem baixinho, e ouvindo música.

ZzZ 
zZz
 ZzZ
 zZz
ZzZ

Numa deserta rua, num beco mal-iluminado; aquele mesmo grito, a mesma mão. Os vizinhos ouvem. Três aumentaram o volume das televisões. Um casal voltou a dormir. Uma velha pensou em ligar, e ligou. A viatura mais próxima, tinha os trabalhadores ocupados: conversavam com as cidadãs da vida. Todos ouvem e todos sabem quem, já viram. Mas não falam. E da ausência se escorre tudo. E as cenas se repetem em outros lugares, diferentes pontos, outras manchas e respingos. Mas nada acontece efetivamente. Tudo se repete.

 zZz

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Velitude prématura

[20 anos]
Mamãe
não quero nescau
nenhuma polenta
ou macarrão
irá me satisfazer

 (a fome que tenho
  não é de comida)

Mãe,
já estou velho
e só posso responder
suas perguntas em
monossílabos

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Deus ex machina

     engrenagens
    labirintos celulares
     material genético
     pistões e válvulas
 dilatam e comprimem
 esquentam e resfriam

    toda máquina
  tem seu condutor
    todo condutor
    é a sua própria
     máquina

sábado, 1 de junho de 2013

Presente de aniversário

Estou contente
com o acontecido

Não tenho problema
com o nada

O rotineiro até
me impressiona.

terça-feira, 28 de maio de 2013

De segunda à segunda

   Já fazem duas semanas que derrubo o café
        todas as terças espero teus olhares

Nas quintas já não tenho grana pra me alimentar
 mastigoovermelho
                             dos teus lábios
              imaginando
         se haveria

   outro planeta
               onde tua
           imperfeição
      seria
              a ordem
               do meu
             caos


No chão outro café
                            e aqui estamos: segunda.

À toa

 Perdi - meu coração numa aula de história
 quando Napoleão casou com Joana d'Arc
 nunca mais encontrei pingo de amor em i 

 E quando se entortaram as pessoas
 me derrubaram da torre de Pisa.

terça-feira, 21 de maio de 2013

nº2

Morrer se torna prazer
nos lábios da morte

Anúncio #1

Procura-se Helena
para incendiar Tróia

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Cálculo

Um milhão vira mil
A soma aumenta subtraindo
Dividir números que se agrupam em dezenas exatas
O resto eu divido em grupos menores
Conto nos dedos
Simplifico:

Um logo vira um milhão

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Grunge

apodrecido no quarto
o pântano continua
crescendo

Casa de Praia

Garoto na areia
Felicidade ao mar

Espelho

Eu não sou nada
Até você olhar pra mim.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

O gato

Existe um gato que chia em meu peito

Seus bigodes eu sinto contra meu pulmão esquerdo

*

Desejaria olhar o felino nos olhos

Abrir a caixa torácica com uma faca de cozinha

Ver se na escuridão ele vira pantera

*

O gato é higiênico

As vezes tusso uma bola de pelo com sangue

*

Para que miar se ninguém te ouve além de mim?

*

Ele ronrona e eu sinto preguiça

Fumo um cigarro e ele dorme

*

Não sei que nome dou pro pobre gatinho

*

Meu amigo médico me sugeriu tuberculose

Eu não gostei

*

Ele parece gostar mais de tango argentino do que de blues

*

Acho que começo a entender ele

*

Três toques com a pata no plexo, um copo de leite

Dois sardinha enlatada

Um cigarro

*

As vezes esqueço que ele está aqui

*

Se eu pudesse estar no peito de alguém também chiaria

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Caixa de Sapato

Afonso passava os dias vivendo o insosso e desgostoso sabor da rotina de trabalho. A ida, a vinda, paisagem mutável-estática, da cidade que tinha estações conturbadas, graças ao efeito el ninõ. Assistira uma documentário sobre. Nada que pudesse assustar nosso herói moderno e cheio de indiferença moderna.
De um dia pro outro começou a perceber, no trajeto casa-trabalho e trabalho-casa, um par de sapato bicolor, que o irritava como uma brincadeira infantil. Mesmo quando pensava em mudar o caminho, e por fim alterando rotas de imprevisto, acabava por encontrar os malditos de duas cores. Era em diversos lugares, na calçada, na janela, no muro, em cima da árvore, em cima de carros, embaixo de carros, perto do bueiro, em todo santo lugar que Afonso mirava seus glóbulos. Aqueles sapatos o perturbavam noite e dia; ora acordado no trabalho, ou em casa escovando os dentes, tendo que recordar que iria acabar vendo novamente o preto e o branco daquele calçado não-abençoado; ora dormindo, sonhando que a sola cinzenta esmagava-o contra o pavimento, ou o encurralava em becos sem saídas.
Chegando em casa, como de costume conversava com seus colegas virtuais, jogava jogos de cartas online, e ficava um bom tempo observando o seu perfil de uma rede social. Ficava encarando a tela, esperando algo que acontecesse, algo que não fosse da iniciativa dele, algo extraordinário. Mas dormiu sobre teclados, deixando uma de suas conversas no abismo do vácuo.
Foi então num dia no trabalho quando Ikê (registrado como Henrique), amigo de trabalho, que costumava contar uma porção de baboseira esquisita, como o dia em que pegou o próprio pai vestindo uma calça legging da sua mãe. Ikê estava revelando o seu novo amor-psicótico, por uma garota na internet. Ele mostrou o blog onde ela postava as fotos que tirava, que por sinal eram até boas fotos. Afonso não dava muita bola para o que Ikê falava, ou mostrava.
— E ela sempre conversa com você? — disse Afonso, fingindo um certo interesse.
— Não, ela não gosta de conversar.
— Mas você já ficou com ela?
— Que? Como?
— É, você já beijou ela?
— Pff!
— Já!? — Diz com um certo espanto.
— Ainda não.
— Como assim?
— É que... — houve uma enorme pausa e uma troca de olhar de uma tensão que vibrava da oitava do desconforto ao mistério cômico de alguns rostos ridiculamente deformados pela enorme pausa erradica, que dava um ar de non-sense, prosseguiu com: — ela acabou de sair de um relacionamento conturbado.
— Nem sabe da sua existência.
— Eu preferi por não entrar na vida dela neste momento.
— Isso foi um sim?
— Não!
— ...
— ...
— Ela pelo menos sabe o seu nome?

No final do expediente Ikê tem algo para mostrar à Afonso, que recusa dizendo que esta muito cansado, mas sem dizer os motivos. Ikê, avisa que mais tarde irá ligar para saírem e tomarem algumas. Afonso concorda, se cumprimentam de longe e tomam rumos opostos.
Em uma rua arborizada de um bairro rico, está Ikê observando por detrás de um carro, com a sua câmera na mão, filmando uma garota. Percebe seu tênis desamarrado, então se abaixa. Nesse momento a garota se aproxima dele.
— Você também gosta de tirar fotos de calçados?
— Na-não... —  gagueja um pouco, segue dizendo —  na verdade não, e-eu tô só amarrando o tênis.
— Hmm... — a menina colocou o indicador sobre o canto do queixo, dando um ar de pensativa —  estranho parece que já te vi tirando fotos antes.
— A-acho que não... — filmou o rosto dela.
Desse dia em diante o amor de Ikê cresceu de forma inimaginavel, ainda mais agora que ele sabia o nome dela. Estava prestes a adicionar ela no facebook, ou até mesmo seguir ela no twitter. Ao chegar em casa, desperdiçou horas procurando-a na internet, por fim encontrou mas não adicionou, receio que ela pensasse "maldito stalker!" ou coisa similar. Lembrou-se de ligar para o amigo que estava deitado.
Marcaram de se encontrar no slacker-point para fazer um slacker-alcohol-trip. De fato, houve relutância em parte de Afonso, que não queria deixar a cama, teve um sonho-premonição de que a noite seria um grande ato de deprimência. Ao saírem do mercado com suas cervejas de marca estrangeira de pronuncia complicada, pois consideram-se mestres da arte da boêmia. Ninguém poderá tirar chacota desses dois.
— Costume idiota esse. — retrucou Afonso.
— Que costume?
— Esse de comprar bebida pra ir na frente dum bar e ficar observando a paisagem.
— No bar a bebida é mais cara.
— Digo, o costume de ficar de observar, sem fazer nada.
— Ah, isso é.

Logo os dois estariam de frente para o bar, só observando. O tempo escorre monótono. Afonso vai banheiro. Ikê, abandonado, não percebeu passar o tempo, muito compenetrado refrescando os olhos. Sim, não era à toa que estava lá, ainda mais segurando cervejas de marca. Afonso voltando, assisti Ikê cumprimentar uma garota de longe, ela diferentemente dele se aproximou e começou a conversar com. Afonso aproximou-se e logo todos ficam sem saber o que dizer. Ela se despediu, eram estranhos demais para uma conversa fiada. Dão uma volta pelo quarteirão, resolvem parar em outro bar.
Afonso observa o céu esperando amigo que foi buscar cervejas. Ele retorna com copos plásticos quase transbordando. Afonso não percebe seu amigo e fica lá observando as estrelas, que são infinitas em quantidade e finitas em tempo de vida. Nunca entendeu bem porque uma estrela não é um ser vivo, afinal elas nascem e morrem, como nós.
— Ei! — na tentativa de chamar atenção do nefelibata, que está pulando de uma estrela cadente pra outra. — Ô-filho duma puta! — Aterrissou direto no terceiro planeta do sistema solar. Abaixou a cabeça, olhou encarou o amigo.
— Que? — respondeu Afonso alcoolizado e abobalhado. Pegou o copo, olhou de novo pra cima. Caiu uma gota exatamente no olho. Fechou os olhos, abriu: estava na cama de casa. A primeira coisa que fez antes de bocejar, foi abrir o notebook. Após aberto, olhou pela janela, olhou a bagunça que era seu quarto. Existiu pensando. Bocejou. E na equação algébrica dum futuro, não encontrou solução pra sua incógnita.

Em outra caixa de sapato, kitnet ou como quiserem chamar, quase sem mobilia, está Julia. A tal garota, que Ikê. Essa é Julia. Que passa a maior parte do seu tempo, fumando um cigarro dentro de casa, observando as fotos que tirou na tarde passada, tomando um café preto. Engole um remédio anti-depressivo, que por sinal é um dos ultimos (o que já lhe trás um desespero). Para ela tirar fotos é uma parte da sua terapia. Já tentou escrever um diário, já foi no templo hare-krishna, fez judô, algumas aulas de teatro e até mesmo fez uma consulta à uma cartomante. O diário ainda existe, mas só faz ela ficar mais triste quando lê as coisas que antigamente escrevia. Os krishna funcionaram por um tempo, mas como toda religião, estava começando a ficar alienada em excesso. Judô só lhe rendeu dores homéricas nas costas. A cartomante ainda não acertou na previsão, disse que ela se apaixonaria por alguém. Até parece, nunca mais vou arranjar ninguém, nem quero também, dizia para si quando lembrava dessas coisas. Estranhamente ela sempre pareceu pra mim, (o narrador em terceira pessoa), à procura de alguém. Antes de prosseguir com a história, vamos analisar a cabeçinha cheia de engrenagens.

*****

JULIA DOS SANTOS

Cor favorita: Azul escuro (mas já fora vermelho bordô)

Queria viajar mas não pode. Falta dinheiro, ou não consegue se programar. As vezes acredita que não quer viajar, mas sei bem que quer. Quem saiba viaje para ver novas paisagens, para ter novas cores para fotografar.

Teve dois relacionamentos na vida:
O primeiro na infância, nada de sério. O menino foi pra outra cidade e tudo acabou. Ninguém chorou. Só sentiram saudade. (As vezes ela se pergunta onde ele está, ou se ele se lembra dela).
O segundo começou, não se lembram como. Foi numa festa. Ela não era de ir muito em festas, mas sua melhor amiga do antigo emprego, insistiu que fosse. Insistiu tanto que acabou indo. Ela acredita que se divertiu, mas na verdade ficou a maior parte do tempo só observando a festa, só ouvindo as pessoas conversarem. Passou a maior parte do tempo só, como sempre foi (e como ela sempre acreditou ser). Ele avistou ela sozinha, presa fácil. Dali conversaram um pouco, que foi se estendendo. Trocaram números, combinaram de se ver de novo, um cinema, um jantar. Assim se passou os dias e com eles semanas, quinzenas, meses, e chegamos à semanas atrás quando ele a pénabundeou, dizendo que precisava viver, queria ser livre, eram jovens. O problema é que ele tinha escorregado para dentro de um buraco chamado Crise, e, acreditou que fosse culpa dela (não vou defender ela, porque talvez até fosse). Virou as costas, fechou a porta, foi embora. Nunca mais voltou. As vezes ela ainda vê ele em alguma atualização do facebook. Ou em alguma foto quando ela fica observando as fotos como neste exato momento. Pegou a garrafa de vodka e despejou no copo de café.

Acorda com o telefone celular tocando. Ikê atende, é a mamãe. Ela pergunta como ele está, "aqui tá tudo bem". Ela pergunta se está precisando de algo, "não mãe, tá tranquilo". Ela fala sobre as maluquices do pai velho, das notas altas da irmã mais nova. Ela diz que está com saudade. Desliga. Ele levanta, liga a TV e o video-game. Sangue jorra e escorre. Virtualmente, claro.

Já é segunda-feira. Ikê liga pra casa de Afonso perguntando porque ele não foi trabalhar. Ah cara, não enche, prosseguiu, acho que vou largar o emprego, sei lá. Desliga o telefone. Afonso se vira na cama e volta dormir. Naquele mesmo dia, ele ainda acordaria pra comer ovos mexidos com sardinha enlatada, o macarrão tinha acabado fazia dois dias. Ele come na frente do computador, e vê uma mensagem de Ikê.

¿Qq tá rolando?
Ah, uma falta de vontade
¿Pq?
Tô pensando em visitar minha mãe uns dias
Aff, Agerente Gelina não vai gostar disso
Q se foda a Angelina!
Pod cre, vai lá véi!
Vlw!
¿Ô quando vc volta?
Sooner or later, maybe never

Paula vive uma vida avessa, de trabalhos curtos ou temporários, de onde costuma roubar objetos, não necessariamente para vende-los, mas se possível conseguir uns trocados a mais. Se estabilizou quando  começou a trabalhar num barzinho da região central, eles precisam de um rostinho bonito e encantador, que principalmente faça uma pose de pin-up. As pin-ups fazem novamente sucesso nessa nova década. Não gosta muita da cidade, acha fria e os habitantes acomodados demais. A verdade: o custo de vida é barato aqui. Se mudou com o namorado pra cidade mas infelizmente eles terminaram, a vida de "casado", não é exatamente das mais fáceis e se acredita estava dependente demais. Ela mesmo se viu fragilizada, e mulher forte como é, decidiu que bastava!
Passou uma época atravessando noites, pó barato, cerveja quente, sexo ruim, qualquer coisa que pudesse mantê-la fora de casa, mas não durou. Amanhã fará dois anos que ela saiu de casa. Mora, no momento, num terreno, onde nos fundos existem várias kitnets, por sinal, ela está neste exato momento fazendo panquecas e irá se queimar com a frigideira. — Caaralho!
Não avisei? A maioria dos acidentes domésticos acontecem na cozinha. Ela termina as panquecas de frango (adora frango), senta-se de frente a TV. O noticiário sensacionalista alerta a queda do preço dos alimentos da cesta básica, de como é seguro viajar de avião (apesar de semana passada ter caído um e morrido todos os passageiros), o melhor modo de fazer as barbas, dicas para entrevista de emprego, previsão de chuva e céu nublado para a semana, acidentes de carro, menores infratores, traficantes, assassinatos, mortes. Desliga a TV. Incomodada pelo apresentador que vive a berrar a torto e a direito, com aquela cara de eterna ressaca. Lava os pratos, tendo em mente o sistema prático, iniciando pelos copos, seguindo dos talheres, pratos e panelas. Se arruma, coloca a mochila nas costas, saí de casa pedalando na bicicleta sem-marcha. Não sei bem porque estou falando dela, ou com vocês.

Julia, sentada numa praça, oprimida pelas ruas e prédios imensos, onde vivem familias de alta renda em suas vidas, com seus carros e mentiras. Ela espera. Espera que toda a sua ansiedade passe, sem que ela tenha que gastar todo o dinheiro da passagem em cigarros. Seu coração acelerado, descontrolado e fora de ritmo. Um médico não pode entender o motivo de acreditar estar enfartando por apenas alguns pensamentinhos-de-nada. Nem eu posso.

Ikê sai do trabalho, se deparando com Afonso à sua espera, fumando um cigarro impaciente.
— Não ia embora?
— Não enche.
Os dois saíram andando. Os assuntos foram se puxando para outros, até que:
— Saca isso — Ikê tira a câmera da mochila, abre o visor. — gravei esses dias, olha só que gatinha. — Mostrando a filmagem à Afonso.

CORTE DE CENA BRUSCO COMO UM SOCO

Mas antes Julia avista os dois rapazes, em certa euforia. Vê que um deles tem entre os dedos, a solução de seus problemas, mas resiste em se levantar do banco e pedir. Prefere sacar a câmera e tirar uma foto em preto e branco. O click faz seu coração desacelerar. E o querer do cigarro já nem existe mais.

A casa de Ikê está relativamente arrumada, apesar das meias estarem em cima da cadeira, os pijamas em cima da cama e a louça formar uma torre de babel na transbordante pia. Os dois estão de frente à tela, assistindo videos de acidentes na Rússia, panacas em quedas estúpidas, idiotas que esborracham ao empinarem motocicletas caras e etc. Afonso com sede e cansado de tanto vídeos, resolve ir até a cozinha pegar um copo d'água. Ikê compreendendo o tédio, abre o tumblr de seu "amor" e percebe uma nova foto.
— Cara, tu deveria lavar a louça de casa, tem gordura criando vida em cima da caneca.
— Olha só essa foto — ignorando o bom conselho de amigo, e redigindo a atenção dele. — somos nós? Não?
— Somos? —  se entreolham, um interrogação desenhada surge entre a cabeça dos dois.

Como era decididamente o ultimo dia de Afonso resolveram gastar, torrar tudo no bar. Nem no pior, nem no melhor. Nem no mais barato e nem no mais caro. Aquele que vai a galera "descolada", num bairro fedido, abandonado pelo governo. Apesar disso sempre tem uma viatura da policia, que convenhamos nunca vi fazer nada. Os medíocres encheram a cara, e Afonso se interessa por Paula, que era atendente do bar. O lugar amigável aos olhos, com posters colados na parede. Paula na hora sacou que ele tinha grana, não que ela fosse interesseira, mas era uma oportunidade de curtir pós-trampo. E depois que o bar fechou eles ainda foram encher os canecos, compraram uma vodka no posto e se teletransportaram nús para a cama, com uma bela ressaca tridestilada.
Ikê voltou um pouco antes dos dois começarem a se pegar, tinha que trabalhar. Deu para o amigo um abraço, uma nota da onça e o filme do Spinal Tap. Os dois se abraçaram forte. Sabiam que seriam amigos de qualquer forma.

Antes de ir para rodoviária, adivinhem só, ele encontrou os sapatos, que brilhavam ausência e totalidade. Retirou os seus tênis surrados, calçou o sapatos e se foi. Assim deveria terminar a história? Assim eu deveria terminar a história, mas como não sou bom com finais.

Na rodoviária só. Acende um cigarro, esperando as lentas horas cinzentas.
—  Moço, cê tem um cigas pra me dar?
— Tenho sim. — solicito como era, entregou-o.
— Obrigado, e tem. — já levantou o isqueiro, acendendo o cigarro dela.
— Vai viajar à negócios? — o vício de assistir filmes, não fez de Afonso o rapaz mais criativo.
— Na verdade não. — meio tímida, ela olhou para suas sapatilhas e pra aqueles sapatos.
— Eu vou visitar minha mãe por um tempo. — ele olhou o relógio, faltavam poucos minutos.
— Acho que te vi hoje de manhã, cê tava saindo da... —  Nesse momento Ikê ridiculamente suado, destrambelhado, aparece. Os dois param de se olhar pra observar a cena: Henrique deplorável, sua bicicleta, ao fundo, toda torta e com o pneu furado.
— Precisava-dar-tchau-fiadaputa! — ele engole a própria garganta seca, continua — Pra ter certeza que tu vai voltar! — abraçou seu amigo, sincero abraço, que teria durado a eternidade se não fosse:
— Cara, eu preciso ir. Eu preciso ir. — se desvencilhou do abraço, se apertaram as mãos, olharem-se no fundo dos olhos. Um traço de sorriso, saindo pela tangente, confirmava que não seria a ultima vez que se viriam. Pegou as malas e foi em direção ao portão.

Ai ficou, Julia e Ikê, um do lado do outro. Foi assim que finalmente se conheceram. Ela sem dinheiro pra viagem e ele sem bicicleta.